1º Domingo do Advento
Ano B
03 de Dezembro de 2023
A liturgia do primeiro Domingo do Advento convida-nos a encarar a nossa caminhada pela história com a certeza de que “o Senhor vem”. Apresenta também indicações concretas acerca da forma como devemos viver enquanto esperamos o Senhor.
A primeira leitura é um apelo dramático a Deus que é “pai” e “redentor”, no sentido de vir mais uma vez ao encontro de Israel para o libertar do pecado e para recriar um Povo de coração novo. O profeta está absolutamente convicto de que a essência de Deus é amor e misericórdia; e esses atributos de Deus são a garantia da sua intervenção salvadora em cada passo da caminhada histórica do Povo de Deus.
O Evangelho convida os discípulos a enfrentar a história com coragem, determinação e esperança, animados pela certeza de que “o Senhor vem”. Propõe que esse tempo de espera seja um tempo de “vigilância”, isto é, um tempo de compromisso ativo e efetivo com a construção do Reino.
A segunda leitura mostra como Deus Se faz presente na história e na vida de uma comunidade crente, através dos dons e carismas que gratuitamente derrama sobre o seu Povo. Sugere também aos crentes que se mantenham atentos e vigilantes, a fim de acolherem os dons de Deus. (Dehonianos)
29.10.2023
A questão posta a Jesus tinha como base a multiplicidade de leis mosaicas, ao todo 613.
37 «Jesus respondeu», citando uma passagem do A.T. (o texto é mais exacto em Mc 12, 29-30), que todo o judeu piedoso recitava duas vezes por dia – a chamada Xemá – e que muitos escreviam e metiam dentro das filactérias ou caixinhas que atavam à testa, ao braço esquerdo ou às costas da mão (cf. Dt 6, 4-9).
38-39 «O primeiro mandamento… O segundo…». Sendo inseparáveis estes dois preceitos, há neles uma hierarquia: devemos amar a Deus mais do que a ninguém e dum modo incondicional; ao próximo, como consequência e efeito do amor a Deus. Se amasse ao próximo por ele mesmo, e não por amor a Deus, esse amor impediria o cumprimento do primeiro mandamento e deixaria de ser autêntico amor ao próximo, pois entrar-se-ia pelo caminho de pouco se interessar pela sua salvação eterna e de vir a reduzir o próximo a uma determinada classe de pessoas, as que agradam ou oferecem vantagens, ou de o equiparar ao amor a um cachorrinho ou a um gato de estimação.
Sugestões para a homilia
O mais importante da vida.
A nossa correspondência ao amor de Deus.
A importância do amor ao próximo.
Como a vida será bem aproveitada.
1. O mais importante da vida.
Deus, que é Amor, criou-nos por amor e criou-nos para amar, pelo que, o amor, surge como o «habitat» natural e sobrenatural do nosso viver. Feliz quem ama e sabe amar. Por isso, à pergunta do doutor da Lei, Jesus afirma que no amor a Deus e ao próximo se resume toda a Lei e os Profetas.
Os rabinos de então descobriram na Bíblia 613 mandamentos: 365 proibições e 248 acções o que gerava em todos uma grande confusão. Era assim demasiado pesado o fardo que colocavam sobre as pessoas. Além disso, discutiam qual deles seria o maior. Havia quem afirmasse, que o mais importante, deveria ser o descanso de Sábado. No meio de tantas dúvidas, como vimos no Evangelho de hoje, um doutor da Lei, para experimentar Jesus, perguntou-Lhe: «Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?» E Jesus imediatamente respondeu: «Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todo o teu espírito». Este é o maior e o primeiro mandamento. O segundo, porém, é semelhante a este: «Amarás o teu próximo como a ti mesmo». «Nestes dois mandamentos se resumem toda a Lei e os Profetas».
2. A nossa correspondência ao Amor de Deus.
Não podemos ter dúvidas, o Senhor, que é a Verdade, foi bem claro. Estaremos a aproveitar tanto melhor o tempo que Deus nos dá, quanto mais O amarmos de todo o coração. Ele não aceita corações divididos. Esta doação total concretiza-se com o cumprimento generoso e alegre da vontade do mesmo Deus. Para que seja possível esta maneira tão proveitosa de viver, é necessário que se dê prioridade à oração e à recepção assídua dos Sacramentos, onde se encontra a verdadeira fonte do Amor e a força para amar e para cumprir, com fidelidade, o plano amoroso que Deus a cada um quis conceder. Tudo isto pressupõe um plano de vida levado muito a sério. Com tais pressupostos essenciais, a vida será bem vivida e como que transformada em oração, com a possibilidade do tão necessário amor, não só existir, mas também crescer em nós. Assim, tudo poderá ser grande diante de Deus, pois que a grandeza das coisas depende apenas do amor com que são executadas.
3. A importância do nosso amor ao próximo.
Como vimos, Jesus chamou a atenção para a importância do amor ao próximo, equiparando-o ao próprio amor a Deus. Ele quer a salvação de todos os homens. Por todos morreu na cruz. Não podemos dizer que amamos a Deus, se não amamos o que Ele ama também. E o próximo, que Ele ama, são todos os outros. Todos, sem excepção: os nossos amigos e inimigos, santos e pecadores. Este amor aos outros, além de universal, deverá ser sincero e constante. Amar é estar ao serviço, atento às necessidades dos outros. Podemos mesmo afirmar que «o egoísmo é o suicídio do amor». Assim o amor aos outros surge como indicador do verdadeiro amor a Deus. A primeira Leitura chama particularmente a atenção para o socorro a prestar aos órfãos e às viúvas, isto é, aos mais carenciados e marginalizados da sociedade.
Esta preocupação pelos outros, não pode limitar-se às carências de bens materiais. Importa que todos encontrem também o verdadeiro caminho da salvação. Caminhos que temos também obrigação de apontar com o nosso viver. Na hora que passa, existem por aí, tantos desvios doutrinais no campo da justiça e da moral, concretamente na vivência da sexualidade, nas infidelidades conjugais, na mesquinhez verificada na aceitação dos filhos e sua educação integral, em tanta rejeição ao magistério da Igreja, na vida de namoro, no cumprimento de todos os mandamentos de Deus. Sinais desses caminhos errados estão certos comentários feitos recentemente a propósito dos 40 anos da maravilhosa e corajosa Encíclica de Paulo VI «Humanae Vitae».
Como Jesus lembra «que vale ao homem ganhar o mundo inteiro se perder a sua alma?»
Importa que todos, todos se salvem. É urgente lançar-lhes uma mão salvadora.
Como é importante preocuparmo-nos com a sorte eterna de todos. Rezar pela conversão dos pecadores foi um dos grandes pedidos de Nossa Senhora, em Fátima, afirmando mesmo que «vão muitas almas para o inferno, por não haver quem se sacrifique e peça por elas». Ensinou mesmo aos pastorinhos uma jaculatória para interceder por eles: «Ó meu Jesus perdoai-nos e livrai-nos do fogo do inferno…socorrei sobretudo as almas mais precisadas». E «as almas mais precisadas» são os pecadores que estão em maior perigo de se perderem.
Na segunda Leitura, S. Paulo, manifesta a sua alegria por saber que os Tessalonicenses se amam e assim se tornam exemplo vivo para todos os crentes.
4. Como a vida será bem aproveitada.
Um dia seremos julgados pelo amor. Assim, a nossa vida na terra, será bem vivida, bem aproveitada, se amarmos a Deus sobre todas as coisas, com todo o coração e a todo o próximo pelo Seu amor. Cada dia da vida que passa, deverá ser vivido com mais amor. Só com uma vida assim, estaremos, com a misericórdia do Senhor, no caminho do reino dos céus, que é o Reino do Amor.
Fala o Santo Padre
«No amor se resume toda a lei divina.»
[…] A liturgia de hoje convida-nos a contemplar a Eucaristia como fonte de santidade e alimento espiritual para a nossa missão no mundo: este sumo «dom e mistério» manifesta e comunica a plenitude do amor de Deus.
A Palavra do Senhor, que há pouco ressoou no Evangelho, recorda-nos que no amor se resume toda a lei divina. O dúplice mandamento do amor de Deus e do próximo contém os dois aspectos de um único dinamismo do coração e da vida. Assim, Jesus leva a cumprimento a revelação antiga, sem acrescentar um mandamento inédito, mas realizando em si mesmo e na própria acção salvífica a síntese viva das duas grandes palavras da antiga Aliança: «Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração…» e «Amarás o próximo como a ti mesmo» (cf. Dt 6, 5; Lv 19, 18). Na Eucaristia nós contemplamos o Sacramento desta síntese viva da lei: Cristo entrega-nos em si mesmo a plena realização do amor a Deus e do amor aos irmãos. Ele comunica-nos este seu amor quando nos alimentamos do seu Corpo e do seu Sangue. Pode então realizar-se em nós quanto escreve São Paulo aos Tessalonicenses na segunda Leitura de hoje: «convertestes-vos dos ídolos de Deus, para servirdes o Deus vivo e verdadeiro» (1 Ts 1, 9). Esta conversão é o princípio do caminho de santidade que o cristão está chamado a realizar na sua existência. O santo é aquele que, sentindo-se de tal forma atraído pela beleza de Deus e pela sua perfeita verdade, progressivamente por ele é transformado. Por esta beleza e verdade está pronto a renunciar a tudo, também a si mesmo. Para ele é suficiente o amor de Deus, que experimenta no serviço humilde e abnegado do próximo, sobretudo de quantos não são capazes de retribuir. […]
HOMILIA DO XXVI DOMINGO DO TEMPO COMUM ANO A
AS APARÊNCIAS ENGANAM
Hoje, o Evangelho (Mt 21, 28-32), apresenta-nos a parábola dos dois filhos enviados pelo pai para trabalhar na sua vinha. Um deles diz imediatamente sim, mas depois não vai; o outro, ao contrário, recusa-se imediatamente, mas depois, tendo-se arrependido, obedece ao desejo paterno. À pergunta de Jesus sobre qual dos dois cumprira a vontade do pai, os ouvintes respondem: “O primeiro” (Mt 21, 31). A mensagem da parábola é clara: Não são as palavras que contam, mas o agir, os atos de conversão e de fé. Jesus, no trecho evangélico, insiste, porém, sobre um aspecto importante: sobre a concretude da resposta. A adesão do homem a Deus é livre, mas deve ser concreta e eficiente. Não é quem diz “Senhor, Senhor” que entra no Reino dos Céus, mas quem faz a vontade de Deus. Não quem se contenta com pios sentimentos e veleidades, mas quem arregaça as mangas e traduz em gestos e fatos de vida cotidiana a vontade de Deus. Dos dois filhos da parábola, Jesus diz que prefere aquele que recusa por palavras, mas depois se arrepende e faz aquilo que o pai lhe pediu; prefere a este porque o outro diz sim ao pai, mas depois não faz nada e não vai para a lavoura trabalhar. Com esta parábola Jesus recorda a sua predileção pelos pecadores que se convertem e ensina-nos que é preciso humildade para acolher o dom da salvação. Jesus dirige esta mensagem aos sumos sacerdotes e aos anciãos do povo de Israel, isto é, aos peritos da religião do seu povo. Estes começam por dizer “sim” à Vontade de Deus; mas a sua religiosidade torna-se rotineira, e Deus já não os inquieta. Por isso sentem a mensagem de João Batista e a de Jesus como um incómodo. E assim o Senhor conclui a sua parábola, com estas palavras: “Os cobradores de impostos e as prostitutas vos precedem no Reino de Deus. Porque João veio até vós, num caminho de justiça, e vós não acreditastes nele. Ao contrário, os cobradores de impostos e as prostitutas creram nele. Vós, porém, mesmo vendo isso, não vos arrependestes para crer nele” (Mt 21,31-32). É urgente que nos interroguemos: Como é minha relação pessoal com Deus na oração, na participação da Missa dominical, no aprofundamento da fé por meio da meditação da Sagrada Escritura e do estudo do Catecismo da Igreja Católica? Em última análise, a renovação da Igreja só poderá realizar-se através da disponibilidade à conversão e de uma fé renovada.
Se descuidarmos de procurar com mais diligência consolidar nossa vocação e eleição (2Pd 1,10), mediante uma contínua conversão do coração, é contra nós que se dirige a Palavra de Jesus: Os publicanos e as meretrizes vos precedem no Reino de Deus. A salvação é coisa pessoal e se decide na atitude que cada um assume diante de Deus e de seu anúncio. Cada um tem a possibilidade de se salvar, mas somente se o quiser; sinal disso é o perdão que Deus dá sempre e generosamente a quem decide deixar a vida do mal para converter – se a Ele de todo o coração. Diz Santo Agostinho: “Aquele que te criou sem a tua vontade não te salva se tu não queres”. Sinal dessa liberdade do homem é sua capacidade de se converter do mal para o bem, de mau tornar – se bom e, por outro lado, a capacidade de se perverter, passando de bom para réprobo. Ninguém, portanto, está condicionado irremediavelmente na vida pelo seu passado.
Se os adversários de Jesus não acreditaram na Sua palavra e não se converteram, foi, principalmente, por orgulho, o bicho roedor de todo o bem e máximo obstáculo à salvação. Por isso, surge muito a propósito, a exortação de São Paulo à Virtude da humildade: “Tende entre vós o mesmo sentimento que existe em Cristo Jesus. Ele que era de condição divina…esvaziou-se a Si mesmo, assumindo a condição de escravo, tornando –se igual aos homens” (Fl.2,5-7). Se o Filho de Deus Se humilhou ao ponto de carregar sobre Si os pecados dos homens, será pedir muito que estes sejam humildes no reconhecimento do seu orgulho e dos seus pecados? Assim como Cristo estava totalmente unido ao Pai e era-Lhe obediente, assim também os seus discípulos devem obedecer a Deus e manter entre si um mesmo sentir.
Com a exortação da unidade, Paulo associa o apelo à humildade. Diz: “Não façais nada por competição ou vanglória, mas, com humildade, cada um julgue que o outro é mais importante, e não cuide somente do que é seu, mas também do que é do outro” (Fl 2, 3-4). A vida cristã é uma “existência-para”: um viver para o outro, um compromisso humilde a favor do próximo e do bem comum. A humildade é uma virtude que no mundo de hoje e, de modo geral, de todos os tempos, não goza de grande estima. Mas os discípulos do Senhor sabem que esta virtude é, por assim dizer, o óleo que torna fecundos os processos de diálogo, possível a colaboração e cordial a unidade. As pessoas humildes vivem com ambos os pés na terra; mas sobretudo escutam Cristo, a Palavra de Deus, que ininterruptamente renova a Igreja e cada um dos seus membros.
Peçamos ao Senhor a graça de progredirmos na virtude da humildade, fundamento de todas as outras; pois a humildade, ensina o Cura D’Ars, “é a porta pela qual passam as graças que Deus nos outorga; é ela que amadurece todos os nossos atos, dando –lhes valor e fazendo com que sejam agradáveis a Deus. Finalmente, constitui-nos donos do coração de Deus, até fazer Dele, por assim dizer nosso servidor, pois Deus nunca pode resistir a um coração humilde”. É uma virtude que não consiste essencialmente em reprimir os impulsos da soberba, da ambição, do egoísmo, da vaidade … Trata-se de uma virtude que consiste fundamentalmente em inclinar-se diante de Deus e diante de tudo o que há de Deus nas criaturas, em reconhecer a nossa pequenez e indigência em face da grandeza do Senhor. As almas santas sentem uma alegria muito grande em aniquilar-se diante de Deus, em reconhecer que só Ele é grande e que, em comparação com a dEle, todas as grandezas humanas estão vazias de verdade e não são mais do que mentira. Este aniquilamento não reduz, não encurta as verdadeiras aspirações da criatura, mas enobrece-as e concede-lhes novas asas, abre-lhes horizontes mais amplos.
A humildade nos fará descobrir que todas as coisas boas que existem em nós vêm de Deus, tanto no âmbito da natureza como no da graça: “Diante de Ti, Senhor, a minha vida é como um nada”(Sl.39(38),6). Somente a fraqueza e o erro é que são especificamente nossos.
A humildade nada tem a ver com a timidez ou a mediocridade. Os santos foram homens magnânimos, capazes de grandes empreendimentos para a glória de Deus. O humilde é audaz porque conta com a graça do Senhor, que tudo pode, porque recorre com frequência à oração, convencido da absoluta necessidade da ajuda divina. E por ser simples e nada arrogante ou auto suficiente, atrai as amizades, que são veículo para uma ação apostólica eficaz e de longo alcance.
A soberba e a tristeza andam frequentemente de mãos dadas, enquanto a alegria é património da alma humilde.
Hoje o Senhor nos envia a trabalhar na sua vinha. Somos o filho que diz sim ou o que diz não? Somos o primeiro ou o segundo? Seria melhor que fôssemos como o terceiro filho, do qual a parábola não fala: aquele que diz sim e vai mesmo!
O que importa mesmo não é parecer, mas ser realmente, realizar na vida o plano de Deus. Para tal, que tenhamos “o mesmo sentimento que existe em Cristo Jesus” (Fl. 2,5). Para evitar as aparências que enganam, a Palavra de Deus nos convida a guiar-nos pelas atitudes de Cristo. Importa entrar na atitude de humildade, reconhecendo em tudo o dom de Deus. Quem se considera justo e perfeito, corre o risco de perder esse dom, porque já se apropriou da santidade. A parábola dos dois filhos nos deve alertar contra o farisaísmo das aparências e conduzir-nos à essência das coisas geradas na humildade. Sejamos humildes, sinceros. As aparências enganam!
Mons. José Maria Pereira
HOMILIA DO XXIV DOMINGO TC ANO A
O PERDÃO SEM LIMITES COMO SINAL DO AMOR INFINITO
“É assim que meu Pai que está nos céus fará convosco, se cada um não perdoar de coração ao seu irmão.” (Mt.18,35)
Amados (as) irmãos e irmãs!
No domingo passado acompanhamos o Mestre Jesus falando aos discípulos sobre os passos da correção fraterna que é fruto da caridade. Continuando a sua formação catequética que visa preparar os discípulos para o Reino de Deus, a Liturgia da Palavra, nos indica um tema que está ligado essencialmente a caridade fraterna que é: o Perdão. Enquanto nos apresenta um Deus que ama sem estipular cálculos ou medidas, a Palavra lembra a todos os cristãos que devemos assumir uma atitude semelhante para com todos caminham ao nosso lado.
No Antigo Testamento já existiam normas e leis que convidavam a viver o perdão para com os irmãos de comunidade. No entanto esta dinâmica de amor e de misericórdia excluía os inimigos e estrangeiros e explicitava que o perdão tem limites e que não se deve perdoar indefinidamente. Pedro, representando a comunidade ainda presa as atitudes legalistas, pergunta qual o número de vezes que se deve perdoar. Respondendo a ele, a parábola utilizada por Jesus, fala-nos de um Deus cheio de bondade e de misericórdia que derrama sobre os seus filhos a superabundância do seu perdão. Por meio desta parábola, somos convidados a descobrir a lógica do Reino de Deus e a deixar que a mesma lógica de perdão e de misericórdia sem limites seja o caminho que conduz nossa vida ao lado dos irmãos com os quais partilhamos a fé.
No primeiro momento da parábola (Mt. 18,21-35), um funcionário real ao prestar contas ao seu rei percebe-se incapaz de pagar a sua dívida gigantesca. O rei ordena então que o funcionário e a sua família sejam vendidos como escravos. O devedor, no entanto, suplica a sua compaixão, e o senhor deixa-se dominar por sentimentos de misericórdia e ao invés de adiar o pagamento, perdoa completamente a dívida. Este mesmo funcionário que experimentou a misericórdia do seu senhor, se recusou, logo em seguida, a perdoar um companheiro que lhe devia uma pequena quantia. A atitude dele, relatada pelos outros funcionários, escandaliza o rei, que decide o castigar severamente.
A atitude incoerente do funcionário é a mesma que é repreendida na primeira leitura (Eclo. 27,33-28,9) quando o autor do Livro do Eclesiástico pergunta ao pecador que alimenta o rancor e a ira: “Não tem compaixão do seu semelhante e pede perdão para os seus próprios pecados?” Esta pergunta praticamente faz eco a atitude indignada do patrão ao constatar a dureza de coração do empregado que instante antes havia sido perdoado de toda sua dívida. Todavia, a indagação não se dirige apenas ao personagem da parábola narrada, mas também a cada um de nós que muitas vezes corremos pressurosos aos pés do sacerdote para suplicar o perdão no sacramento da Penitência ou Reconciliação e no entanto, nos recusamos a perdoar a mínima ofensa que nos foi dirigida. Os ensinamentos contidos na parábola nos exortam a despertar para perceber que todos somos convidados em nossa fé a evitar caminhar pela lei de Talião, isto é, invertermos a lógica do “olho por olho, dente por dente”, fazendo com que as nossas relações com os irmãos sejam marcadas por sentimentos de perdão e de misericórdia. Somente assim o ser humano construirá a sua felicidade nesta terra, pois assumindo a lógica do Reino poderá pedir e esperar de Deus o perdão para as suas falhas.
Mas como alcançar algo que parece ser humanamente impossível? Como perdoar sem limites? São Paulo, na segunda leitura (Rm. 14,7-9), nos apresenta o nosso modelo a ser imitado: Jesus Cristo. O cristão deve moldar a sua vida à luz da vida do próprio Mestre. Pois “se vivemos, vivemos para o Senhor, e se morremos, morremos para o Senhor. Portanto, quer vivamos quer morramos, pertencemos ao Senhor”. Cristo na sua atitude de perdão infinito, é o modelo que devemos imitar.
Às vezes, na vivência diária da nossa fé, esquecemos o essencial e perdemos tempo e força em discussões fúteis e desnecessárias. Discutimos se devemos receber a comunhão na mão ou na boca, se determinado cântico é litúrgico ou não, se os padres se devem casar, se a procissão do padroeiro da paróquia deve passar somente por tal rua. E facilmente, esquecemos o amor, o respeito pelo outro, a fraternidade, e que todos vivemos e pertencemos ao mesmo Mestre e Senhor. A pedagogia da parábola que é o centro do evangelho de hoje sempre me faz lembrar a letra de um cântico que meditamos nas nossas celebrações que afirma: “Se eu não perdoar o meu irmão. O Senhor não me dá o seu perdão. Eu não julgo para não ser julgado. Perdoando é que serei perdoado”. (Cântico de Comunhão Quaresmal). Pois o centro da nossa fé é o perdão encarnado. O que é a Cruz senão a manifestação concreta do perdão incondicional, infinito e superabundante deste Deus benevolente?
Na história narrada, Jesus Cristo, nos lembra do essencial da missão do discípulo. A parábola revela que existe uma relação entre o perdão de Deus e o perdão humano. Mas então o perdão de Deus tem condições? Ele não é infinito? O Evangelho não está a negar a infinita misericórdia de Deus. Todavia, para que o perdão de Deus alcance o coração humano, este mesmo coração deve permanecer aberto tanto para pedir misericórdia como também para ser fonte de misericórdia. Se um coração se fecha e se endurece pela mágoa e rancor, a graça de Deus não encontrará espaço para entrar e fazer nele a sua morada. Afinal, com a mesma medida com que medimos os outros seremos também medidos por Deus (Mc. 4,24 / Mt. 7,2). O Papa Francisco insistiu por estes dias que a atitude de pedir e oferecer perdão é essencial para todos os relacionamentos, sobretudo na família que é a base de toda sociedade. Nas palavras do Papa Francisco: “Sem perdão a família torna-se uma arena de conflitos e um reduto de mágoas.”
Quem fez a experiência suprema do perdão deve ser transformado por este perdão e vivê-lo também. Perdoar o próximo significa atualizar o mesmo perdão que recebeu de Deus. Quem se reconhece perdoado, sabe que o perdão é sempre um dom, que recebe de Deus por pura benevolência.
Mas atenção! O perdão não pode ser confundido com a omissão ou silêncio diante do que é errado. O cristão não silencia a injustiça e a maldade; não aceita o pecado e não se cala diante do erro. Todavia, também não alimenta rancores e mágoas através dos erros dos outros e jamais deve permitir que os conflitos o impeçam de ir ao encontro para partilhar o perdão recíproco. Perdoar não significa ficar em silêncio ou fugir do dever da construção de um mundo fraterno. Significa estar sempre disposto a ir ao encontro, a estender a mão para levantar quem caiu, a dar outra oportunidade para o recomeço, assim como Deus, na sua infinita misericórdia faz connosco no dia do nosso Batismo e faz cada vez que o buscamos no sacramento da Reconciliação.
Em suma, perdoar é experimentar o amor de Deus e deixar-se transformar por Ele. Não poderemos pedir o máximo do perdão para nossos pecados, enquanto não formos capazes de perdoar o mínimo da ofensa que nos fizeram. O próprio Jesus já havia dito que somente quem muito ama será capaz de muito perdoar (Lc. 7,36-50). Ser discípulo de Jesus Cristo significa assumir na vida uma atitude de bondade e compreensão e assim ter a vida marcada pela Misericórdia, pelo Acolhimento e pelo Amor que é a origem de todo perdão. Pois como nos lembra São João da Cruz: “No entardecer da vida, seremos julgados pelo Amor”.
Oremos: Ó Deus da paciência e do perdão, que perdoastes a nossa imensa dívida, nós Vos pedimos que o teu Reino se realize em nossos corações e que todas as nossas comunidades sejam sinal deste Reino de Paz e de Perdão. Amém.
Pe. Paulo Sérgio Silva
Paróquia Nossa Senhora da Conceição – Farias Brito.
(Adapt: LF)
HOMILIA DO XXIII DOMINGO TC ANO A
Leituras: Ez 33,7-9; Sl 94; Rm 13,8-10; Mt 18,15-29
Tema-mensagem: Correção fraterna, exercício da misericórdia de Deus que obriga Cristo a fazer-se ainda mais presente na Comunidade e o Pai a conceder-nos tudo o que lhe pedirmos.
Introdução
Costuma-se denominar o Domingo de hoje como “O Domingo da Correção Fraterna”. Mas, talvez, se possa também chamá-lo, com certa razão, de “O Domingo da busca do irmão que pecou”, pois, esta é a insistência maior que perpassa as leituras.
1. Cada um responsável pelo seu próximo (Ez 33,7-9)
A liturgia da Palavra começa com um pequeno trecho de Ezequiel, o profeta chamado por Deus para uma nova missão: a de ser sua sentinela junto ao seu Povo. No exercício dessa sua nova missão, o profeta vai descobrindo aos poucos que na raiz de toda a decadência de Israel está sua infidelidade a Jahvé. Jerusalém e Israel caem nas mãos dos estrangeiros porque seus corações haviam se corrompido, caindo nos braços dos ídolos dos pagãos. A decadência é tal que Israel se assemelha a um campo de mortos, de um monte de cadáveres ao final de uma batalha perdida. Mas, Deus não desiste de sua fidelidade para com seu Povo querido, prometendo-lhe um tempo de reconstrução nacional e de renovação religiosa: uma verdadeira ressurreição.
Mas, para que a graça desse tempo não passasse despercebida era necessária a vigilância e um vigilante. É então que o Senhor fala a Ezequiel: “Quanto a ti, filho de homem, eu te estabeleci como sentinela para a casa de Israel. Logo que ouvires alguma palavra de minha boca, tu deves adverti-los em meu nome” (Ez 33,7).
A missão e a responsabilidade então depositadas nas costas do profeta são novas, diferentes da anterior e muito mais graves. Agora, ele devia contactar as pessoas em particular e avisá-las que os inimigos que Israel deve combater não são mais os estrangeiros, os que vêm de fora, mas os que vêm de dentro; daqueles que perderam o amor de seu Deus porque não souberam ou não quiseram guardá-lo. Por isso, ao justo deverá confirmá-lo em sua conduta e ao ímpio confrontá-lo e convocá-lo para que se converta. Tudo muito perigoso, uma vez que agora ele devia dirigir-se a cada um de um modo direto e imediato; de cada um ele tinha que ouvir um sim ou um não acerca do novo chamamento de Deus. A gravidade aparece nesta admoestação do Senhor: “Se eu disser ao ímpio que ele vai morrer, e tu não lhe falares advertindo-o a respeito de sua conduta, o ímpio vai morrer por própria culpa, mas eu te pedirei contas de sua morte” (Ez 33,8).
Essa última advertência do Senhor estava suspensa sobre a cabeça de Ezequiel como a espada da Dâmocles, pois, acima de tudo, ela tocava direta e imediatamente na própria pessoa do profeta. Quem mais tarde dá uma bela interpretação dessa exigência é São Francisco. Interrogado por um mestre dominicano, curioso para saber o parecer do Santo sobre essa passagem, ele respondeu: o servo de Deus deve arder tanto na vida e na santidade, que repreenda todos os ímpios com a luz de seu exemplo e com a voz de sua conduta. Assim, direi, o esplendor da vida e o bom perfume da fama é que vão anunciar a todos sua iniquidade” (CA 36).
Essa passagem de Ezequiel, torna-se, assim, um prenúncio da correção fraterna proposta por Jesus no Evangelho de hoje.
2. Igreja, a Comunidade do Senhor, na qual se exercita e se proclama a misericórdia e o perdão (Mt 18,15-29)
…
2.1. Sempre a inclusão, jamais a exclusão
Segundo esse desígnio, os dirigentes de uma comunidade não podem jamais excluir de seu seio quem quer que seja. Por isso, a exortação que abre a perícope de hoje começa com este princípio ou orientação eclesial: Se teu irmão pecar contra ti, vai corrigi-lo, mas em particular, a sós contigo (Mt 18,15). A exemplo do bom pastor que não descansa enquanto não encontrar a ovelha perdida, devem, ao contrário, empreender todos os esforços possíveis para reconduzir o irmão que se afastou da comunidade por ter ofendido outro irmão.
Duas questões merecem consideração. Primeiramente, o que está em jogo, aqui, não é a busca de uma (fraternidade) ou de uma comunidade sem conflitos, desencontros e ofensas de modo que nos proporcione um ambiente agradável, amistoso. Pois, segundo o Evangelho, a ofensa de um irmão deve ser sempre recebida como graça, bênção, ganho, jamais como perda, malefício. Por isso, devemos amar e ter como nossos maiores amigos aqueles que nos maltratam, caluniam. Amigo que é amigo, irmão que é irmão nunca necessita de perdão porque jamais se sente ofendido prejudicado pelo irmão. Por isso, Deus, da parte Dele, por exemplo, não precisa que lhe peçamos perdão, mas que nos convertamos a Ele, isto é, que vivamos voltados, virados, unidos a Ele como filhos. Na verdade esse é o único pecado: estar desligado, afastado, separado de Deus e, por extensão, da sua Comunidade. Por isso, quem precisa pedir perdão somos nós. O que está em jogo é a correção, isto é, a grande corrida de toda a comunidade na busca do ser fraterno comum; que todos se ergam, se levantem e se ponham de pé a fim de correr na busca da raiz comum que os torna irmãos uns dos outros.
Por isso, pecado, aqui, mais que um ato moral é uma atitude que corta, divide, separa a pessoa de sua origem, no caso, o Pai do Céu, proporcionando assim a sua (do pecador) desgraça, a sua desventura, o seu inferno. A mãe que é mesmo mãe, a família que é mesmo família, não sofrem tanto porque o filho ou o irmão os tenha difamado, prejudicado, mas porque ele, o filho, o irmão está a sofrer, prejudicando-se por ter se separado, afastado, desligado deles.
…
Afastar-nos do amor de Jesus Cristo, do seu seguimento, de estar e viver com Ele, nosso único e grande amor, eis também, nosso único e grande pecado, raiz e fonte de todos os demais. No primeiro caso é o nosso Céu e no segundo, o inferno.
2.2. Jamais desistir de procurar e de esperar pelo irmão
A segunda questão diz respeito à metodologia da correção fraterna. Ao contrário da sinagoga que logo excluía de seu meio, como pagão e publicano, quem não aceitasse ou rejeitasse o judaísmo, a Igreja devia seguir o caminho do bom pastor que vai atrás da ovelha até encontrá-la e convertê-la, isto é, levá-la para a familiaridade da casa paterna.
A busca do irmão pecador conhece graus ou etapas. Na primeira vez é a sós contigo (Mt 18,15), a segunda com mais uma ou duas pessoas (Mt 18,16) e a terceira com toda a Igreja (Mt 18,17).
Este método progressivo de tratar o pecador indica a intensidade de um empenho atento e diligente, ocupado sempre e tão somente em animar e admoestar da melhor maneira possível o irmão. Aqui não cabem atitudes ou respostas, como: “Já falei e não adiantou! Agora, chega!” Dirá, ao contrário: “Creio que ainda não admoestei o suficiente. Preciso fazê-lo de novo, e melhor!”. Por isso, se não conseguiu sozinho vai com a ajuda de outro irmão ou de toda a comunidade, se for o caso. Imaginemos o exemplo de uma família, um tanto numerosa de dez ou doze filhos, na qual um deles se retira, se afasta, se separa indo viver com um grupo de drogados ou assaltantes. Um dos irmãos, então toma a iniciativa. Vai, conversa e tenta trazer de volta o irmão para o convívio familiar. Não consegue. Convida, então mais um ou dois irmãos, mas também sem sucesso. A família toda então, decide procurar o irmão. Imaginemos a cena: o pai, a mãe, os irmãos mais velhos e até os pequeninos inocentes de três ou quatro anos pedindo, implorando para que o irmão deixe o caminho das drogas e da (violência) e volte para o aconchego do seu lar. Ora, se isso não comove dificilmente outras iniciativas terão sucesso.
Na verdade, jamais foi entregue à Igreja algum poder de domínio ou de exclusão sobre os seus membros. O que acontece por vezes, como no caso deste evangelho, é que é o próprio irmão quem se exclui. Nesse caso ela só tem de aceitar a decisão dele, exigindo, apenas que então, para felicidade dele, seja coerente, fiel consigo mesmo e não queira ou ouse participar de certos atos ou benefícios, incompatíveis com a sua decisão, isto é, com o seu afastamento. Se não crê na presença de Cristo na eucaristia, por exemplo, porque vai comungar? Se não crê no matrimónio cristão, porque quer casar na Igreja? Na verdade, a famosa “excomunhão” não significa propriamente expulsão, mas uma declaração pública e oficial que, vivendo assim, ele já não está em comunhão com a igreja, a comunidade dos cristãos. Pois, ”ex” significa fora e “comunhão” comum união: fora da comunhão.
Esta compreensão fica clara com a última medida ou admoestação: seja considerado “como se fosse um pagão ou pecador público” (Mt 18,17). Muitas vezes, porque estamos tomados por certo exclusivismo particularista e puritanismo religioso, lemos essa conclusão como condenação e exclusão. Mas, na verdade, o que Jesus diz é apenas que seja tratado como se fosse. Ou seja, ele não está fora. É como se fosse, se estivesse fora. É preciso, pois que se respeite a decisão dele, mas sempre com esta declaração (clarificação) ou lembrança: “Tu continuas a ser um cristão, um seguidor de Jesus Cristo e, por isso, um irmão nosso. Vem, então unir-te de novo à tua família. Deixa de viver separado! Converte-te!”. Pois, para um batizado a marca de cristão é eterna e indelével; nenhuma infidelidade jamais conseguirá apagá-la. Para usar uma figura atual: É mais forte e perene que qualquer tatuagem. Ou, segundo o Cântico dos Cânticos: “mais forte que a morte”. Por isso, São Paulo, falando aos coríntios acerca do julgamento de um incestuoso, diz: humanamente ele ficará arrasado, mas o seu espírito será salvo no dia do Senhor (1Cor 5,5). Enfim, a esperança da conversão não deve jamais desaparecer do coração de nenhum cristão, muito menos da Igreja.
2.3. Reunidos em nome do Senhor
Na segunda parte, Jesus, depois de falar por duas vezes da eficácia da oração comunitária (“Tudo que ligardes na terra será ligado no céu e tudo que desligardes na terra será desligado no céu” (Mt 18,18), termina com esta conclusão: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou aí, no meio deles” (Mt 18,20).
Nome, aqui, por se tratar de Jesus, o Senhor, o Ressuscitado, o “Vivente”, o inominável, mais que um rótulo, é a presença da sua própria Pessoa. Por isso, para estar unido e reunido em nome Dele, mais que a presença física dos irmãos, ou de gritar “Senhor, Senhor!” é preciso estar munido do seu espírito e no cultivo dos seus sentimentos e inquietudes, principalmente da sua misericórdia e perdão para com os pequeninos, os pobres, os enfermos e os pecadores. Então, sim, quando unidos no vigor dessa sua Paixão, tudo o que pedirmos nos será concedido porque, nesse caso se está tocando na fibra mais profunda do coração do Pai que está nos céus: a misericórdia.
3. No amor ao próximo, o pleno cumprimento de toda a lei (Rm 13,8-10)
Na segunda leitura, tirada do capítulo13 da Carta aos Romanos, Paulo continua a sua exortação aos cristãos de Roma acerca da nova conduta deles, agora como cristãos. Trata-se de um pequeno tratado da moral cristã que tem como ponto de partida e de referência o coração de todo o Evangelho: o amor, jamais a lei: Irmãos, não fiqueis devendo nada a ninguém, a não ser o amor mútuo, pois quem ama o próximo está cumprindo toda a Lei (Rm 13,8). E um pouco mais adiante, conclui citando o mandato proclamado pelo próprio Senhor: Amarás o teu próximo como a ti mesmo (Rm 13,9).
Partindo desse princípio, a moral cristã, sempre primou por uma junção muito forte entre o próximo e o eu. Não se pode amar o outro se não se aprender, primeiro a amar a si mesmo. Mas, amar a si mesmo não significa dar vazão às paixões ou interesses, ordenados ou desordenados, da própria subjetividade. Segundo Kierkegaard é, a exemplo das aves do céu, aprender a contentar-se em ser um homem, contentar-se em ser o humilde, a criatura, que tão pouco é capaz de sustentar-se a si mesma; é compreender que o Pai celeste o alimenta (Soeren Kierkegaard, O Evangelho dos sofrimentos, 35). É, enfim, trabalhar para que a nova criatura, a nova pessoa, o novo eu, nascido na e pela graça do batismo, possa crescer e amadurecer. Esse é o eu que precisa ser amado e cultivado.
Assim, na medida em que aprende a amar o próximo mais próximo, que é o seu eu mais profundo, nascido do alto, também terá mais clareza e facilidade em amar o próximo do outro, porque o eu do outro, também é este eu nascido do alto e, portanto, seu irmão. Por isso, o outro, não é uma ideia, um ideal, mas uma realidade bem concreta – uma pessoa, um acontecimento – que não se escolhe, mas que aparece à nossa frente gratuita e graciosamente. Ou como diz São Francisco, um dom que Deus me deu (T).
Bela descrição desse amor encontramos nesta passagem intitulada:
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- Amo porque amo, amo para amar
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- O amor basta-se a si mesmo, em si e por sua causa encontra satisfação.
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- É seu mérito, o seu próprio prémio. Além de si mesmo, o amor não exige
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- motivo nem fruto. Seu fruto é o próprio acto de amar. Amo porque amo,
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- amo para amar. Grande coisa é o amor, contanto que vá ao seu princípio,
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- volte à sua origem, mergulhe na sua fonte, beba sempre donde corre
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- sem cessar.
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- (São Bernardo, Ofício das Leituras, 20 de agosto).
Conclusão
A necessidade da correção fraterna atravessa toda a história sagrada, pois desde Caim e Abel os fratricídios e demais violências de irmãos contra irmãos jamais cessaram. Seu exercício, porém, é de tal grandeza que homem algum é capaz de realizá-la plenamente por suas próprias forças. A nós, porém, foi dada essa graça por Jesus Cristo que, mesmo condenado à morte, inocentemente, soube suplicar pelos seus algozes: “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”.
Jesus Cristo crucificado passa a ser, assim, não apenas um exemplo, mas o princípio e a possibilidade da correção fraterna. Mas, para isso é preciso mergulhar fundo no coração de Jesus. Jesus, naquele momento, tinha que chegasse com o que se ocupar: o peso de sua Cruz. Por que meter-se na vida dos outros, principalmente dos seus algozes? É que, como Filho do Homem e Filho de Deus, o seu coração estava tomado de uma grande esperança ou fé. Jesus nunca deixou de crer na chamada filiação divina, ardendo no coração de cada pessoa, mesmo na mais depravada e de coração endurecido.
Assim, com esse ou por causa desse mistério não há mais homem que seja somente homem. Todos nos tornamos sacramentais de Deus e da sua salvação. Por isso, ofender o outro, seja quem for, é ofender a Deus e fazer o bem ao outro, seja quem for, é amar, fazer o bem a Deus. Desde a encarnação, Deus está em nossas mãos para que O recusemos ou O acolhamos e distribuamos aos outros.
…
Por isso, ao falar da correção fraterna, São Francisco exorta os frades para que guardem bem suas almas e as almas de seus irmãos e de que esta é a verdadeira e a santa obediência de Nosso Senhor Jesus Cristo (RNB 5). E, escrevendo a um Ministro, exorta: Assim, quero conhecer se amas o Senhor e a mim, servo d’Ele e teu, se fizeres o seguinte: não haja no mundo Irmão que tenha pecado até não poder mais que, após ver os teus olhos, se afaste sem a tua misericórdia, se misericórdia buscar. E, se não buscar, pergunta-lhe se não quer misericórdia (CM).
Fraternalmente,
Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini, OFM
(Adaptação:LF)
DISCURSO DE ACOLHIMENTO DO PAPA NA JMJ
Discurso do Papa Francisco, na íntegra
Queridos jovens, boa tarde!
Sede bem-vindos e obrigado por estarem aqui. Fico feliz por vos ver e também por escutar o
simpático barulho que fazeis, contagiando-me com a vossa alegria. É bom estarmos juntos em Lisboa: para aqui fostes chamados por mim, pelo Patriarca, a quem agradeço as suas palavras, pelos vossos Bispos, sacerdotes, catequistas e animadores. Agradeçamos-lhes por isso com uma grande salva de palmas! Mas foi sobretudo Jesus quem vos chamou: agradeçamos-Lhe com um forte aplauso!
Amigos, não estais aqui por acaso. O Senhor chamou-vos, não só nestes dias, mas desde o início dos vossos dias. Sim, Ele chamou-vos pelo nome. Chamados pelo nome: tentai imaginar estas três palavras escritas em letras grandes e, em seguida, pensai que estão escritas dentro de vós, nos vossos corações, como que formando o título da vossa vida, o sentido do que sois: tu és chamado pelo nome, tu és chamada pelo nome, eu sou chamado pelo nome.
Nenhum de nós é cristão por casualidade. Todos fomos chamados pelo nosso nome.
Ao princípio da teia da vida, ainda antes dos talentos que possuímos, das sombras e feridas que carregamos dentro de nós, recebemos um chamamento. Chamados, porque amados. É lindo. Aos olhos de Deus somos filhos preciosos, que Ele cada dia chama para abraçar e encorajar; para fazer de cada um de nós uma obra-prima única e original, cuja beleza mal conseguimos vislumbrar.
Nesta Jornada Mundial da Juventude, ajudemo-nos a reconhecer esta realidade essencial: sejam estes dias ecos vibrantes da chamada amorosa de Deus, porque somos preciosos a seus olhos, apesar do que às vezes os nossos olhos veem, enevoados pela negatividade e ofuscados por tantas distrações.
Que estes sejam dias em que o teu nome, através de irmãos e irmãs de muitas línguas e nações que o pronunciam com amizade, ressoe como uma notícia única na história, porque único é o pulsar do coração de Deus por ti.
Sejam dias para fixar no coração que somos amados tal como somos. Este é o ponto de partida da JMJ, mas sobretudo da vida. Somos amados como somos, sem maquilhagem. Entende isto?
E somos chamados pelo nome: não é um simples modo de dizer, é Palavra de Deus (cf. Is 43, 1; 2 Tm 1, 9). Amigo, amiga, se Deus te chama pelo nome significa que, para Ele, não és um número, mas um rosto, um coração. Quero fazer-te notar uma coisa: muitos, hoje, sabem o teu nome, mas não te chamam pelo nome.
Com efeito, o teu nome é conhecido, aparece nas redes sociais, é processado por algoritmos que lhe associam gostos e preferências. Mas tudo isso não interpela a tua singularidade, mas a tua utilidade para pesquisas de mercado.
Quantos lobos se escondem por trás de sorrisos de falsa bondade, dizendo que conhecem quem és, mas sem te querer bem, insinuando que creem em ti e prometendo que serás alguém, para depois te deixarem sozinho, quando já não lhes fores útil. São as ilusões do mundo virtual e devemos estar atentos para não nos deixarmos enganar, porque muitas realidades que nos atraem e prometem felicidade mostram-se depois pelo que são: coisas vãs, supérfluas, substitutos que deixam o vazio interior. Jesus, não é assim! Ele tem confiança em ti, para Ele cada um de nós conta.
E assim nós, sua Igreja, somos a comunidade dos chamados: não dos melhores – não, absolutamente não –, somos todos pecadores, mas somos todos convocados assim como somos.
Pensemos um pouco sobre isto no nosso coração. Somos chamados como somos, com os nossos problemas, com as limitações que temos, com a nossa alegria transbordante, com esta vontade de sermos melhores e de triunfar. Somos chamados como somos. Pensem nisto. Jesus chama-me como sou, não como querem que seja. Somos a comunidade dos irmãos e irmãs de Jesus, filhos e filhas do mesmo Pai.
Amigos, quero ser claro convosco, que sois alérgicos às falsidades e a palavras vazias: na Igreja há espaço para todos. Para todos! Na Igreja ninguém está a mais, há espaço para todos, assim como todos. E Jesus disse isso claramente quando chamou os discípulos para o banquete de um senhor que o tinha preparado e disse tragam todos: jovens e velhos, doentes e sãos, justos e pecadores. Todos, todos, todos. Na Igreja há lugar para todos. “Padre eu sou um desgraçado ou uma desgraçada. Há lugar para mim?” Há lugar para todos, juntos, cada um na sua língua. Cada um na sua língua repitam comigo: todos, todos, todos. Esta é a Igreja, a Mãe de todos.
O Senhor não aponta o dedo, mas abre os braços, abraça-nos a todos: assim no-Lo mostra Jesus na cruz. Não fecha a porta, mas convida a entrar; não mantém à distância, mas acolhe. Nestes dias transmitamos a sua mensagem de amor. Deus ama-nos, Deus chama-nos. Que lindo é isto.
Esta tarde fizeram-me muitas perguntas. Nunca se cansem de perguntar. E perguntar, é bom; aliás muitas vezes é melhor que dar respostas, pois quem pergunta permanece «inquieto» e a inquietude é o melhor remédio contra a habituação, aquela normalidade rasteira que anestesia a alma.
Cada um de nós tem um “interrogador” dentro… todos temos questões interiores, quando rezamos diante de Deus colocamos perguntas que vão sendo respondidas ao longo da vida. Só temos de saber esperar.
Deus ama por surpresa. Não está programado. O amor de Deus é surpresa. Sempre surpreende, sempre nos mantém alertas e surpreende.
Queridos amigos e amigas. Deus ama-nos como somos. Não como querem que sejamos ou a sociedade quer. Ama-nos com os nossos defeitos, com as limitações que temos e a vontade que temos de seguir em frente na vida. Deus nos chama a si. Confiem, por que Deus é Pai que nos quer e ama. Isto não é muito fácil e para isso temos uma grande ajuda: a Mãe do Senhor, que é a nossa Mãe também.
Era isto que vos queria dizer. Não tenham medo, tenham coragem, vão em frente, sabendo que estamos amparados pelo amor de Deus. Deus nos ama. Digam todos: Deus nos ama. Obrigado!
DISCURSO DO PAPA NO CCB AOS POLÍTICOS
“Senhor Presidente da República,
Senhor Presidente da Assembleia da República,
Senhor Primeiro-Ministro. Distintos membros do Governo e do Corpo Diplomático,
Ilustres Autoridades, representantes da sociedade civil e do mundo da cultura,
Senhoras e Senhores!
Saúdo-vos cordialmente e agradeço no Senhor Presidente o acolhimento e as amáveis palavras que me dirigiu. Estou feliz por estar em Lisboa, cidade do encontro que abraça vários povos e culturas e que, nestes dias, se mostra ainda mais universal: torna-se de certo modo, a capital do mundo. Isto condiz bem com o seu caráter multiétnico e multicultural (penso, por exemplo, no bairro da Mouraria, onde convivem pessoas provenientes de mais de sessenta países) e revela os traços cosmopolitas de Portugal, que afunda as suas raízes no desejo de se abrir ao mundo e explorá-lo, navegando rumo a novos e amplos horizontes.
Não muito longe deste lugar, no Cabo da Roca, está gravada a frase dum grande poeta desta cidade: “Aqui… onde a terra se acaba e o mar começa” (L. Vaz de Camões, Os Lusíadas, canto III, 20). Durante séculos, acreditou-se que lá estivessem os confins do mundo. E em certo sentido é verdade, porque este país confina com o oceano, que delimita os continentes. E, do oceano, Lisboa conserva o abraço e o perfume. Faço meu, com muito gosto, aquilo que os portugueses costumam cantar: “Lisboa tem cheiro de flores de mar” (A. Rodrigues, Cheira bem, cheira a Lisboa, 1972). Muito mais do que um elemento paisagístico, o mar é um apelo que não cessa de ecoar no ânimo de cada português, podendo uma vossa poetisa celebrá-lo como: “mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim” (S. de Mello Breyner Andresen, Mar sonoro) e outro poeta rezava assim: “Deus do mar dai-nos mais ondas, Deus da terra dai-nos mais mar” (D. Faria, o país de Deus). À vista do oceano, os portugueses são levados a refletir sobre os imensos espaços da alma e sobre o sentido da vida no mundo. Nesta linha, gostaria também eu de partilhar convosco algumas reflexões, deixando-me levar pela imagem do oceano.
Segundo a mitologia clássica, Oceano é filho do céu (Urano): a sua vastidão leva os mortais a olharem para cima elevando-se para o infinito. Ao mesmo tempo, porém, Oceano é filho da terra (Gea) que abraça, convidando assim a envolver de ternura todo o mundo habitado. Com efeito, o oceano não liga apenas povos e países, mas também terras e continentes; por isso Lisboa, cidade do oceano, lembra a importância do conjunto, a importância de conceber as fronteiras, não como limites que separam, mas como zonas de contacto. As grandes questões hoje, como sabemos, são globais e já muitas vezes tivemos de fazer experiência da ineficácia da nossa resposta às mesmas, precisamente porque o mundo, diante de problemas comuns, se mantém dividido ou pelo menos não suficientemente unido, incapaz de enfrentar juntos aquilo que nos põe em crise a todos. Parece que as injustiças planetárias, as guerras, as crises climáticas e migratórias correm mais rapidamente do que a capacidade e, muitas vezes, a vontade de enfrentar em conjunto tais desafios.
Lisboa pode sugerir uma mudança de ritmo. Em 2007, foi assinado aqui o homónimo Tratado de reforma da União Europeia. Nele se lê que “a União tem por objetivo promover a paz, os seus valores e o bem-estar dos seus povos” (Tratado de Lisboa que altera o Tratado da União Europeia e o Tratado que institui a Comunidade Europeia, art. 1.4/2.1): mas vai mais longe afirmando que, “nas suas relações com o resto do mundo (…), contribui para a paz, a segurança, o desenvolvimento sustentável do planeta, a solidariedade e o respeito mútuo entre os povos, o comércio livre e equitativo, a erradicação da pobreza e a proteção dos direitos humanos” (art. 1.4/2.5). Não se trata apenas de palavras, mas de marcos miliários no caminhos da comunidade europeia, esculpidos na memória desta cidade. Este é o espirito do conjunto, animado pelo sonho europeu dum multilateralismo mais amplo do que o mero contexto ocidental.
Segundo uma etimologia, que é objeto de discussão, o nome Europa derivaria duma palavra que indica a direção do ocidente. O certo é que Lisboa constitui a capital mais ocidental da Europa continental, lembrando a necessidade de abrir caminhos de encontro mais vastos, como aliás Portugal está a fazer sobretudo com os países de outros continentes irmanados pela mesma língua. Espero que a Jornada Mundial da Juventude seja, para o “velho continente”, um impulso de abertura universal. Na verdade, o mundo tem necessidade da Europa, da Europa verdadeira: precisa do seu papel de construtora de pontes e de pacificadora no Leste europeu, no Mediterraneo, na África e no Médio Oriente. Assim poderá a Europa trazer para o cenário internacional, a sua originalidade específica; vimo-la delineada no século passado quando, do crisol dos conflitos mundiais, fez saltar a centelha da reconciliação, tornando verdadeiro o sonho de se construir o amanhã juntamente com o inimigo de ontem, o sonho de abrir percursos de diálogo e inclusão, desenvolvendo uma diplomacia da paz que extinga os conflitos e acalme as tensões, capaz de captar o mais débil sinal de distensão e de o ler por entre as linhas mais tortas da realidade.
No oceano da história, estamos a navegar nem momento tempestuoso e sente-se a falta de rotas corajosas de paz. Olhando com grande afeto para a Europa, no espírito de diálogo que a carateriza, apetece perguntar-lhe: Para onde navegas, se não ofereces percursos de paz, vias inovadoras para acabar com a guerra na Ucrânia e com tantos conflitos que ensanguentam o mundo? E ainda, alargando o campo: Que rota segues, Ocidente? A tua tecnologia, que marcou o progresso e globalizou o mundo, sozinha não basta; e muito menos bastam as armas mais sofisticadas, que não representam investimentos para o futuro, mas empobrecimento do verdadeiro capital humano que é a educação, a saúde, o estado social. Fica-se preocupado ao ler que, em muitos lugares, se investem continuamente os recursos em armas e não no futuro dos filhos. Sonho uma Europa, coração do Ocidente, que use o seu engenho para apagar focos de guerra e acender luzes de esperança; uma Europa que saiba reencontrar o seu ânimo jovem, sonhando a grandeza do conjunto e indo além das necessidades imediatas; uma Europa que inclua povos e pessoas, sem correr atrás de teorias e colonizações ideológicas.
Com a sua imensa vastidão de água o oceano recorda as origens da vida. No mundo evoluído de hoje, paradoxalmente, tornou-se prioritário defender a vida humana, posta em risco por derivas utilitaristas que a usam e descartam. Penso em tantas crianças não-nascidas e idosos abandonados a si mesmos, na dificuldade de acolher, proteger, promover e integrar quem vem de longe e bate às nossas portas, no desamparo em que são deixadas muitas famílias com dificuldade para trazer ao mundo e fazer crescer os filhos. Também aqui apetece perguntar: Para onde navegais, Europa e Ocidente, com o descarte dos idosos, os muros de arame farpado, as mortandades no mar e os berços vazios? Para onde ides se, perante o tormento de viver, vos limitais a oferecer remédios rápidos e errados como o fácil acesso à morte, solução cómoda que parece doce, mas na realidade é mais amarga que as águas do mar?
Mas Lisboa, abraçada pelo oceano, oferece-nos motivos para esperar. Há uma maré de jovens que se espraia sobre esta cidade acolhedora. Quero agradecer o grande trabalho e generoso empenho empreendidos por Portugal para acolher um evento tão complexo de gerir, mas fecundo de esperança, pois — como se diz por aqui — “ao lado dos jovens, não se envelhece”. Jovens provenientes de todo o mundo que cultivam anseios de unidade, paz e fraternidade, desafiam-nos a realizar os seus sonhos bons. Não andam pelas ruas a gritar sua raiva, mas a partilhar a esperança do Evangelho. E se, em muitos lugares, se respira hoje um clima de protesto e insatisfação, terreno fértil para populismos e conspirações, a Jornada Mundial da Juventude é ocasião para construir juntos. Reaviva o desejo de criar coisas novas, fazer-se ao largo e navegar juntos rumo ao futuro. Vêm à mente algumas palavras ousadas de Fernando Pessoa: “Navegar é preciso; viver não é preciso (…); o que é necessário é criar” (Navegar é preciso). Trabalhemos, pois, com criatividade para construirmos juntos! Imagino três estaleiros de construção esperança onde podemos trabalhar todos unidos: o ambiente, o futuro, a fraternidade.
O ambiente. Portugal partilha com a Europa muitos esforços exemplares na defesa da criação. Mas o problema global continua extremamente grave: os oceanos aquecem e, das suas profundeza, sobe à superfície a torpeza com que poluímos a nossa casa comum. Estamos a transformar as grandes reservas de vida em lixeiras de plástico. O oceano lembra-nos que a existência humana é chamada a viver de harmonia com um ambiente maior do que nós; este deve ser guardado com cuidado, tendo em conta as gerações mais novas. Como podemos dizer que acreditamos nos jovens, se não lhes dermos um espaço sadio para construir o seu futuro?
O futuro é o segundo estaleiro de obras. E o futuro são os jovens. Mas muitos fatores os desanimam, como a falta de trabalho, os ritmos frenéticos em que se veem imersos, o aumento do custo de vida, a dificuldade de encontrar uma casa e, ainda mais preocupante, o medo de constituir família e trazer filhos ao mundo. Na Europa e em geral no Ocidente, assiste-se a uma triste fase descendente na curva demográfica: o progresso parece ser uma questão que diz respeito ao desenvolvimento técnico e ao conforto dos indivíduos, enquanto o futuro pede para se contrariar a queda da natalidade e o declínio da vontade de viver. A boa política pode fazer muito neste sentido, pode gerar esperança. Com efeito, não é chamada a conservar o poder, mas a dar às pessoas a possibilidade de esperar. É chamada, hoje mais do que nunca, a corrigir os desequilíbrios económicos dum mercado que produz riquezas mas não as distribui, empobrecendo de recursos e de certezas os ânimos. É chamada a voltar a descobrir-se como geradora de vida e de cuidado da criação, a investir com clarividência no futuro, nas famílias e nos filhos, a promover alianças intergeracionais, onde não se apague o passado mas se favoreçam os laços entre jovens e idosos. A isto mesmo faz apelo o sentimento da saudade portuguesa, que exprime nostalgia, desejo dum bem ausente, que só renasce em contacto com as próprias raízes. Neste sentido, é importante a educação, que não pode limitar-se a fornecer noções técnicas para se progredir economicamente, mas destina-se a introduzir numa história, transmitir uma tradição, valorizar a necessidade religiosa do homem e favorecer a amizade social.
O último estaleiro de esperança é o da fraternidade, que nós cristãos, aprendemos do Senhor Jesus Cristo. Em muitas partes de Portugal, está ainda muito vivo o sentido de vizinhança e solidariedade. Contudo, no contexto geral duma globalização que nos aproxima mas não aos dá uma proximidade fraterna, somos todos chamados a cultivar o sentido da comunidade, começando por ir ter com quem vive ao nosso lado. Com efeito, como observou Saramago, “o que dá verdadeiro sentido ao encontro é a busca; e é preciso andar muito, para se alcançar o que está perto” (Todos os nomes, 1997). Como é bom voltar a descobrir-nos irmãos e irmãs, trabalhar pelo bem comum, deixando para trás contrastes e diferenças de visão! Também aqui servem de exemplo os jovens que nos levam, com o seu grito de paz ânsia de vida, a derrubar as rígidas divisórias de pertença erguidas em nome de opiniões e crenças diversas. Soube de muitas jovens que cultivam, aqui, o desejo de se fazerem próximo dos outros; penso na iniciativa “Missão País”, que leva milhares de jovens a viver no espírito do Evangelho experiências de solidariedade missionária em zonas periféricas, sobretudo nas aldeias do interior, indo ao encontro de muitos idosos sozinhos. Quero agradecer e encorajar a tantos que na sociedade portuguesa se preocupam com os outros, nomeadamente a Igreja, e que fazem tanto bem mesmo longe dos holofotes. Sintamo-nos chamados todos juntos fraternalmente, a dar esperança ao mundo em que vivemos e a este magnifico país. Deus abençoe Portugal!”
DISCURSO DO PAPA À IGREJA NO MOSTEIRO DOS JERÓNIMOS
Prezados Irmãos Bispos,
Amados sacerdotes e diáconos, consagradas, consagrados e seminaristas,
Queridos agentes pastorais, irmãos e irmãs, boa tarde!
Estou feliz por me encontrar no meio de vós não só para viver, juntamente com muitos jovens, a Jornada Mundial da Juventude, mas também para partilhar o vosso caminho eclesial com as suas canseiras e esperanças. Agradeço a D. José Ornelas as palavras que me dirigiu; desejo rezar convosco, para – como disse – nos tornarmos, junto com os jovens, ousados em abraçar «o sonho de Deus e encontrar caminhos para uma participação alegre, generosa e transformadora a bem da Igreja e da humanidade».
Mergulhei na beleza do vosso país, terra de passagem entre o passado e o futuro, local de antigas tradições e de grandes mudanças, embelezado por vales viçosos e praias douradas debruçadas sobre o imenso e fascinante oceano, que banha Portugal.
Tudo isto me sugere o ambiente da vocação dos primeiros discípulos, que Jesus chamou nas margens do Mar da Galileia. Quero deter-me sobre esta chamada, que põe em evidência o que acabámos de ouvir na Lectio brevis das Vésperas: o Senhor salvou-nos e chamou-nos não em atenção às nossas obras, mas segundo a sua graça (cf. 2 Tm 1, 9).
O mesmo aconteceu na vida dos primeiros discípulos, quando Jesus, ao passar, “viu dois barcos que se encontravam junto do lago. Os pescadores tinham descido deles e lavavam as redes” (Lc 5, 2). Então Jesus subiu para o barco de Simão e, depois de ter falado às multidões, mudou a vida daqueles pescadores, convidando-os a fazerem-se ao largo e lançarem as redes. Salta aos olhos o contraste: por um lado, os pescadores descem do barco para lavar as redes, ou seja, limpá-las, guardá-las e voltar para casa e, por outro, Jesus sobe para o barco e convida a lançar novamente as redes para a pesca. Sobressaem as diferenças: os discípulos descem, Jesus sobe; os primeiros querem guardar as redes, o Mestre quer que saiam de novo para o mar a fim de pescar.
Em primeiro lugar, temos os pescadores que descem do barco para lavar as redes. Esta é a cena que se apresenta aos olhos de Jesus, e Ele pára ali mesmo. Pouco antes quisera começar a sua pregação na sinagoga de Nazaré, mas os seus conterrâneos expulsaram-No da cidade e tentaram até matá-Lo (cf. Lc 4, 28-30). Então Jesus sai do lugar sagrado e começa a pregar a Palavra no meio da gente, pelas estradas onde labutam dia a dia as mulheres e os homens do
Cristo está interessado em fazer sentir a proximidade de Deus precisamente nos lugares e situações onde as pessoas vivem, lutam, esperam, às vezes colecionando nas suas mãos fracassos e insucessos, precisamente como aqueles pescadores que não tinham pescado nada durante a noite.
Jesus olha com ternura para Simão e seus companheiros que, cansados e angustiados, lavam as suas redes, realizando um gesto repetitivo, mas também cansado e resignado: não havia mais nada a fazer senão voltar para casa de mãos vazias.
Às vezes, podemos sentir um cansaço semelhante no nosso caminho eclesial, quando nada mais temos nas mãos além das redes vazias. Trata-se dum sentimento bastante difundido nos países de antiga tradição cristã, atravessados por muitas mudanças sociais e culturais e cada vez mais marcados pelo secularismo, pela indiferença para com Deus, por um progressivo afastamento da prática da fé.
Aliás isto vê-se, com frequência, acentuado pela desilusão e a aversão que alguns nutrem face à Igreja, devido às vezes ao nosso mau testemunho e aos escândalos que desfiguraram o seu rosto e que nos chamam a uma humilde e constante purificação, partindo do grito de sofrimento das vítimas que sempre se devem acolher e escutar.
O risco, porém, quando nos sentimos desanimados, é descer do barco, acabando presos nas redes da resignação e do pessimismo. Ao contrário, confiemos que Jesus continua a tomar pela mão e a levantar a sua Esposa amada. Por isso levemos ao Senhor as nossas canseiras e as nossas lágrimas, para poder enfrentar as situações pastorais e espirituais, dialogando entre nós com abertura de coração para experimentar novos caminhos a seguir.
Quando estamos desanimados, consciente ou inconscientemente, nós aposentamos-nos do selo apostólico e vamos perdendo e transformamo-nos em funcionários do sagrado. É muito triste quando uma pessoa que é consagrada a Deus se transforme em funcionário, em mero administrador. É muito triste.
De facto, logo que os apóstolos descem para lavar as ferramentas usadas, Jesus sobe para o barco e depois convida a lançar de novo as redes.
Em momentos de desânimo e de jubilação, deixemos que Jesus suba à barca de novo. Com a ilusão inicial, que deve ser revivida, reconquistada, reeditada.
Ele vem procurar-nos nas nossas solidões e crises para nos ajudar a recomeçar.
A espiritualidade é recomeço, não tenham medo. É assim a vida, cair e recomeçar, aborrecer-se e receber de novo a alegria. Receber essa mão de Jesus.
E hoje continua a passar pelas margens da existência para despertar a esperança e dizer, também a nós, como a Simão e aos outros: «Faz-te ao largo; e vós lançai as redes para a pesca» (Lc 5, 4).
Quando se perde a ilusão ficamos com mil argumentos para não lançar as redes. Sobretudo essa resignação amarga, que corrói a alma.
Irmãos e irmãs, vivemos certamente um tempo difícil, mas a interpelação que o Senhor dirige hoje à Igreja é esta: «Queres descer do barco e afundar na desilusão, ou fazer-Me subir permitindo que seja mais uma vez a novidade da minha Palavra a tomar na mão o leme?
Sacerdotes, bispos e consagrados, querem apenas conservar o passado que ficou para trás ou lançar de novo e com entusiasmo as redes para a pesca?». Eis o que nos pede o Senhor: despertar a ânsia pelo Evangelho.
Quando se acomodam ou se aborrecem ou a missão transforma-se numa espécie de emprego. É o momento de dar lugar à segunda chamada de Jesus, que nos chama de novo, sempre. Chama-nos para nos deixar caminhar, para nos recriarmos. Não tenham medo dessa segunda chamada de Jesus.
E podemos dizer que esta é a ânsia «boa» que vos comunica, a vós portugueses, a imensidão do oceano: fazer-se ao largo, não para conquistar o mundo, mas para o alegrar com a consolação e a alegria do Evangelho. Sob este ponto de vista, podemos ler as palavras dum vosso grande missionário, o Padre António Vieira, chamado «Paiaçu – pai grande».
Segundo ele, para nascer, Deus ter-vos-ia dado uma pequena terra, mas, ao fazer-vos debruçar sobre o oceano, deu-vos o mundo inteiro para morrer: «Para nascer, pequena terra; para morrer, toda a terra: para nascer, Portugal; para morrer, o mundo» (A. Vieira, “Sermão de Santo António”, Roma 1670, IV, in: Homilias, vol. III, tomo VII, Porto 1959, p. 69).
Somos chamados a lançar de novo as redes e a abraçar o mundo com a esperança do Evangelho. Não é momento de parar e desistir, de atracar o barco à margem nem de olhar para trás; não devemos escapar deste tempo, só porque nos mete medo, para nos refugiarmos em formas e estilos do passado. Não! Este é o tempo da graça que o Senhor nos concede para nos aventurarmos no mar da evangelização e da missão.
Mas, para o conseguir, precisamos também de fazer opções. Quero indicar três, inspiradas no Evangelho.
A primeira opção: fazer-se ao largo. Para lançar novamente as redes ao mar, é preciso sair da margem das desilusões e do imobilismo, afastar-se daquela tristeza melosa e daquele cinismo irónico que nos assaltam à vista das dificuldades. Temos de o fazer para passar do derrotismo à fé, como Simão que, apesar de ter trabalhado em vão toda a noite, conclui: «Porque Tu o dizes, lançarei as redes» (Lc 5, 5). Mas, para nos fiarmos dia a dia no Senhor e na sua Palavra, não bastam palavras, é necessário muita oração.
Como rezo eu? Como um papagaio: blá, blá, blá, blá, blá… Ou a dormir a sesta durante a eucaristia porque não sei como falar com o Senhor. Como rezo?
Apenas na adoração, só diante do Senhor, é que encontramos o gosto e a paixão pela evangelização. Então vencemos a tentação de continuar com uma «pastoral nostálgica feita de lamentações»….
Uma monja lamentava-se de tudo e deram-lhe a alcunha de “Só Lamentadora”. Quantas vezes as nossas impotências e as nossas desilusões as transformamos em lamentações. E deixando essas lamentações ganha-se outra vez força para navegar mar adentro, sem ideologias nem mundanismos.
A mundanidade espiritual que origina o clericalismo… O clericalismo não é só dos padres, os laicos clericalizados são piores do que os padres, esse clericalismo que nos arruína e, como dizia um grande mestre espiritual: essa mundanidade espiritual que provoca o clericalismo é um dos males mais graves que pode acontecer à Igreja
Superar estas dificuldades sem ideologias e mundanidade, animados por um único desejo: que chegue a todos o Evangelho. Neste caminho, não vos faltam exemplos! E, dado que nos encontramos no meio dos jovens, apraz-me recordar um jovem lisboeta, São João de Brito, que há séculos, no meio de muitas dificuldades, partiu para a Índia e lá não desdenhava falar e vestir-se à maneira das pessoas locais contanto que lhes pudesse anunciar Jesus.
Também nós somos chamados a mergulhar as nossas redes no tempo em que vivemos, a dialogar com todos, a tornar compreensível o Evangelho, mesmo que para isso tenhamos de correr o risco de alguma tempestade. Como os jovens que aqui vêm de todo o mundo para desafiar as ondas gigantes da Nazaré, façamo-nos ao largo também nós sem medo. Sim! Não temamos enfrentar o mar alto, porque no meio da tempestade e dos ventos contrários, Jesus vem ao nosso encontro e diz: «Coragem, sou Eu, não temais!» (Mt 14, 27).
Como segunda opção, levar juntos por diante a pastoral. No texto, Jesus confia a Pedro a tarefa de fazer-se ao largo, mas depois fala no plural, dizendo «e vós lançai as redes» (Lc 5, 4): Pedro guia o barco, mas todos estão no barco e todos são chamados a fazer descer as redes. E, quando apanham uma grande quantidade de peixes, não pensam conseguir arranjar-se sozinhos, nem gerem a dádiva como posse e propriedade privada, mas «fizeram sinal – diz o Evangelho – aos companheiros que estavam no outro barco, para que os viessem ajudar» (Lc 5, 7). Assim encheram, não um, mas dois barcos: um significa solidão, fechamento, pretensão de autossuficiência; dois significa relação.
A Igreja é sinodal, é comunhão, ajuda mútua, caminho comum. E a isto tende o Sínodo em curso, que terá o seu primeiro período de assembleia geral no próximo mês de outubro.
Na barca da Igreja, deve haver lugar para todos: todos os batizados são chamados a subir para ela e lançar as redes, empenhando-se pessoalmente no anúncio do Evangelho.
Sublinho esta palavra: todos, todos, todos. Toca-me muito no coração aquela passagem do Evangelho em que o Senhor da festa diz: tragam todos. Doentes e sãos, novos e velhos, justos e pecadores. Todos. A Igreja não seleciona quem entra ou não. Todos.
É um grande desafio, especialmente em contextos onde os sacerdotes e os consagrados estão cansados porque, enquanto as necessidades pastorais vão aumentando sempre mais, eles são cada vez menos. Mas podemos olhar para esta situação como uma ocasião para, com fraterno entusiasmo e sã criatividade pastoral, envolver os leigos.
Assim as redes dos primeiros discípulos tornam-se uma imagem da Igreja, que é uma «rede de relações» humanas, espirituais e pastorais. Se não houver diálogo, corresponsabilidade e participação, a Igreja envelhece. Permiti que o exprima assim: nunca um Bispo sem o próprio presbitério e o Povo de Deus; nunca um padre sem os seus irmãos sacerdotes; e todos juntos – sacerdotes, religiosas, religiosos e fiéis leigos – como Igreja, nunca sem os outros, sem o mundo. Sem mundanismo, mas não sem o mundo.
Na Igreja, ajudamo-nos, apoiamo-nos reciprocamente e somos chamados a difundir, também fora dela, um clima de fraternidade construtiva. Aliás, como escreve São Pedro, nós somos as pedras vivas usadas para a construção dum edifício espiritual (cf. 1 Ped 2, 5). E poderia acrescentar numa linguagem que vos é familiar: vós, fiéis portugueses, formais uma «calçada», sois os ladrilhos preciosos que compõem um tal pavimento acolhedor e brilhante que o Evangelho há de pisar; e não pode faltar uma pedrinha sequer, senão imediatamente se dá conta. Tal é a Igreja que, com a ajuda de Deus, somos chamados a construir!
Enfim a terceira opção: tornar-se pescadores de homens.
Não tenham medo, isso não é fazer proselitismo. É anunciar o Evangelho que provoca.
Jesus confia aos discípulos a missão de se fazerem ao largo no mar do mundo. Muitas vezes, na Sagrada Escritura, o mar simboliza o lugar do mal e das forças adversas que os homens não conseguem dominar. Por isso pescar as pessoas e tirá-las para fora da água significa ajudá-las a voltar a subir de onde afundaram, salvá-las do mal que ameaça afogá-las, ressuscitá-las de todas as formas de morte.
Com efeito, o Evangelho é um anúncio de vida no mar da morte, mas sem proselitismo, mas com amor. Quando um movimento eclesial, um bispo, um padre, uma freira ou um laico fazem proselitismo, isso não é cristão. Ser cristão é convidar, acolher, ajudar, mas sem proselitismo.
O Evangelho é um anúncio de vida no mar da mortede liberdade nas voragens da escravidão, de luz no abismo das trevas. Como afirma Santo Ambrósio, «os instrumentos da pesca apostólica são como as redes: de facto, as redes não fazem morrer quem fica preso nelas, mas conserva-o em vida, arrasta-o dos abismos para a luz» (Exp. Luc. IV, 68-79).
Não faltam trevas na sociedade atual, inclusive aqui em Portugal. Prova-se a sensação de que tenha diminuído o entusiasmo, a coragem de sonhar, a força para enfrentar os desafios, a confiança no futuro; entretanto, vamos navegando nas incertezas, na precariedade económica, na pobreza de amizade social, na falta de esperança.
A nós, como Igreja, cabe a tarefa de nos fazermos ao largo nas águas deste mar, lançando a rede do Evangelho, sem acusar ninguém, mas levando às pessoas do nosso tempo uma proposta de vida nova, que é a de Jesus: levar o acolhimento do Evangelho a uma sociedade multicultural; levar a proximidade do Pai às situações de precariedade e pobreza, que crescem sobretudo entre os jovens; levar o amor de Cristo onde é frágil a família e se encontram feridas as relações; transmitir a alegria do Espírito onde reinam o desânimo e o fatalismo.
Assim se exprime um escritor vosso: «Para se chegar ao infinito, e julgo que se pode lá chegar, é preciso termos um porto, um só, firme, e partir dali para Indefinido» (F. Pessoa, Livro do Desassossego, Lisboa 1998, 247). Queremos sonhar a Igreja Portuguesa como um «porto seguro» para quem enfrenta as travessias, os naufrágios e as tempestades da vida.
De coração vos agradeço, irmãos e irmãs, a atenção prestada, tudo o que fazeis, o vosso exemplo e constância. Muito obrigado! E confio-vos a Nossa Senhora de Fátima, à guarda do Anjo de Portugal e à proteção dos vossos grandes Santos e, aqui em Lisboa, de modo especial a Santo António, apóstolo incansável, pregador inspirado, discípulo do Evangelho atento aos males da sociedade e cheio de compaixão pelos pobres. Que ele interceda por vós e vos dê a alegria duma nova pesca milagrosa. E, por favor, não vos esqueçais de rezar por mim.
ENTREVISTA
“O cristianismo é, neste momento, a religião mais perseguida no mundo inteiro”
Defende Deus de todas as acusações e assume que se o mundo está como está é sobretudo porque “os homens estão loucos”. Franciscano, Frei Fernando Ventura denuncia os hipócritas, sobretudo “os facínoras que em nome de Deus vêm atiçar pessoas umas contra as outras”.
Leonídio Paulo Ferreira e Pedro Cruz (TSF)
23 Dezembro 2022 — 07:00
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Franciscano Capuchinho, missionário de pé descalço, viajante pelo mundo, sempre para estar ao lado dos pobres e dos que sofrem. 2022 foi apenas mais um ano neste caminho de um homem de Deus que está mais perto da terra. Frei Fernando Ventura, 63 anos, escolheu a missão de ser pobre e de amparar os que mais sofrem, seja qual for a latitude ou a longitude. Hoje, nesta entrevista, pousa o olhar experiente num mundo em constante mudança.
O ano que está agora a acabar ainda tem restos da peste que trouxe a fome e a morte, começou com uma guerra na Europa, o que já não acontecia nesta escala há 70 anos, também trouxe mais fome e mais morte. Os deuses devem estar loucos?
Os homens estão loucos. Estamos ainda a atravessar um período de turbulência, não terminou e infelizmente parece estar longe de terminar, que vem marcado por duas coisas que sintetizaria em poucas palavras. É um ponto de chegada e de continuidade de um endeusamento do “eu” e de uma tribalização do “nós”. Estamos a pagar esta factura de “eus” exacerbados e autoendeusados que procuram, apesar de tudo, a segurança da tribo e uma gestão tribal da vida, do desporto, da política, da culinária, das relações interpessoais. A tribo que funciona ao mesmo tempo como lugar de protecção e também como lugar de despersonalização. Nesta luta do “eu” à procura do seu próprio sentido, estamos a pagar a factura. Esta factura a que chamo “solteironização” dos afectos. O tempo que vivemos é solteiro de afectos, viúvo de emoções e divorciado de compromissos, é um ponto de chegada, de continuidade, e será o ponto de partida para outro estilo de ser e de estar que ainda está por inventar. Estamos a começar a perceber por onde podemos eventualmente caminhar. Esta chegada de um processo que vem da passagem de um tempo teocêntrico para um tempo antropocêntrico, estamos dentro da dimensão do fluir da história do pensamento, sobretudo o ocidental, e da história da humanidade. É a partir de Feuerbach que vamos ouvindo no discurso público e no discurso escrito esta ideia que entra na história e na história do pensamento. Dizia Feuerbach que o Homem criou Deus à sua imagem e semelhança e é desta afirmação que depois vamos ouvir Nietzche, Engels, Marx, etc., é esta afirmação e este grito que vem de algumas centenas de anos atrás, “Deus morreu e fomos nós que o matámos”. Esta necessidade de matar Deus, esta necessidade de matar a alteridade absoluta, a terra no tempo que é hoje, na necessidade que é hoje de matar a alteridade que é o outro. E isto montado e até dito de forma cândida, da forma como ensinamos as nossas crianças e com a qual pretendemos construir uma sociedade quando dizemos que a nossa liberdade termina quando começa a liberdade do outro. Isto é profundamente estúpido.
Porquê?
Porque se o outro é o limite da minha liberdade, tenho de o matar para ser livre. Alteridade do outro, alteridade no sentido de ser outro que seja diferente de mim, que preciso que seja diferente de mim para que possa crescer naquilo que a mim me falta para ser maior. Se não entender o meu espaço de liberdade que é aumentado, na medida em que possa acrescentar a minha liberdade à liberdade do outro, estaremos a desconstruir a sociedade. Deixe-me dar o exemplo das varandas: um prédio que tem varanda a toda a volta, tem também uma barreira em cada apartamento que impede de passar para o espaço do outro. Se os vizinhos daquele andar conseguissem tirar as barreiras todas, ficavam todos com uma varanda gigante para poderem circular. Entendo a liberdade assim, entendo este mito da construção da liberdade, da minha liberdade que é limitada pela liberdade do outro, mas esta barreira que me impede de chegar à alteridade e de conseguir construir uma relação com o outro, cada vez mais digo: esta é uma sociedade solteira de afetos, viúva de emoções e divorciada de compromissos.
Um dos temas que marcam incontornavelmente este ano de 2022 é a invasão da Ucrânia pela Rússia. O Papa Francisco, enquanto construtor de paz, deveria ter ido a Kiev e a Moscovo – e seria o primeiro Papa a fazê-lo – ou na impossibilidade física de o fazer, poderia e deveria ter mandado um enviado para tentar conciliar as partes?
Têm sido mais do que muitas as vezes em que o Papa se tem disponibilizado pessoalmente para moderar o conflito ou para disponibilizar o espaço do Vaticano, um espaço neutro de encontro e de diálogo. É um sonho de todos os Papas, diria eu, desde a revolução bolchevique, poder entrar e tocar a Rússia. Houve um encontro do Papa com o patriarca de Moscovo há uns anos em Cuba, não propriamente em território russo. Mas temos a dimensão política e temos a dimensão religiosa, e os últimos discursos que temos ouvido do patriarca Cirilo é, novamente, este casamento pornográfico entre o altar e o trono.
“É um sonho de todos os Papas, diria eu, desde a revolução bolchevique, poder entrar e tocar a Rússia.”
Mas o Papa deveria ter ido a Kiev ou deveria ter manifestado uma intenção clara de lá ir?
Manifestou claramente essa intenção.
Mas não foi.
Não foi, mas ele não pode decidir que vai e partir no dia seguinte ou no dia em que decidir. Obviamente, há a outra parte que tem uma palavra a dizer e o Papa não é um indivíduo sozinho que decide por si aquilo que é a sua vontade de querer estar, ir falar e intervir.
Não podendo o Papa ir a Moscovo ou a Kiev, acha que as suas declarações, este apelo ao diálogo e à negociação chega a algum dos lados em conflito ou, pelo contrário, fazem todos orelhas moucas?
Chega a ambos os lados, mas o efeito é aquele que vemos. Não tenho quaisquer dúvidas de que a diplomacia do Vaticano tem estado muito activa, como sempre está, na descrição que impõe naturalmente a diplomacia. Comparo este momento desta insistência do Papa em querer ir falar com as duas partes, àquilo que foi Damieta para Francisco de Assis. Estamos no contexto da segunda cruzada, Francisco vai de facto à Damieta, ao Egipto, fala com as duas partes – o famoso encontro com o sultão -, e temos alguns objetos que o sultão ofereceu a São Francisco. Eles falaram de facto, mas os interesses de ambas as partes e, naquela época, os interesses superiores do papado de então e das questões do comércio do oriente, impediu que o enviado Francisco de Assis conseguisse fazer-se ouvir. Ele falou, mas os ouvidos ficaram surdos. O Papa Francisco está nesta circunstância semelhante à de Francisco de Assis.
O facto de estarmos a falar de países de matriz ortodoxa, apesar da Ucrânia também ter uma igreja que segue Roma, dificulta o papel do Papa? Como é que interpreta o facto de haver uma clivagem da própria Igreja Ortodoxa, que acaba por ficar partida entre ucranianos e russos, com os crentes obrigados a escolher um dos lados do conflito, mas também da pertença a uma igreja ou a outra?
Como dizia há pouco, quando o altar e o trono se casam, nascem abortos e criam-se divisões e situações irreconciliáveis à partida. Também nós somos herdeiros daquilo que foi Constantino e do que foi o império a entrar e a ocupar os espaços relacionais e estruturais da própria igreja. Dois mil anos depois, estamos ainda em luta para desmontar alguns esquemas piramidais e alguns esquemas imperiais que vão ficando como fungos. O diálogo com a ortodoxia nunca foi fácil, desde o famoso cisma do oriente que estamos nesta luta. Sou testemunha ocular e vivencial dos esforços que têm sido feitos pelo Vaticano e pela Conferência Episcopal Italiana. Estive em três encontros em que celebraram com a comunidade judaica, outro com os ortodoxos orientais e outro com os ortodoxos russos. Passámos dez dias de convívio com os nossos irmãos judeus e foi fantástico, de uma grande normalidade relacional e de podermos rezar juntos, até à segunda dose que foi com os ortodoxos orientais, aí já muito mais balizado pelo politicamente correto. Há quase uma impossibilidade de sentir que temos alguém para falar do outro lado quando se tratou por fim deste encontro com os responsáveis da Igreja Ortodoxa russa. Há séculos de história, há séculos de incompreensões e de entulho, esta seria uma fase em que viveríamos uma época privilegiada para remover o entulho, mas infelizmente ainda nos caiu mais em cima. Obviamente, a igreja ucraniana sofre com isto e sabemos que está a crescer a contestação da parte da igreja ucraniana filorrussa que depende do patriarcado de Moscovo. Não sei como estão as coisas actualmente, nem se calhar é possível medir com este ambiente de guerra que estamos a viver. Mas há uma divisão mesmo dentro da igreja ucraniana, relativamente à obediência ao patriarcado de Moscovo. São divisões tristes, são contrassinais, isto nada tem a ver com Cristo ou com cristianismo, tem a ver com a estupidez humana e a incapacidade destes fundamentalismos. E aqui cito muito um autor judeu que faleceu há pouco tempo, Amos Oz, e que tem um livro fantástico chamado Caros Fanáticos e há uma frase lapidar que não deixa dúvidas nenhumas quanto à definição do fanático e diz, “fanático é aquele que só consegue contar até um” e nós vivemos num mundo fanatizado. Quando há pouco falava da tribalização do “nós”, é este treino quase pavloviano de sermos todos formatados para só saber contar até um.
Enquanto isso, no Irão, milhares de jovens não contam até um. São milhares nas ruas em protestos contra um regime religioso, mas também fanático e arriscam por isso a sua própria vida. Mais uma vez, vai dizer que a culpa é dos homens, mas pergunto o que é feito de Deus?
Todos temos esta tendência ou vontade de imaginar Deus como o gestor das marionetas, mas se alguma coisa Deus é, é a liberdade. Aquilo que o cristianismo traz em termos de novidade, não é um Deus num céu distante, é um Deus que ao fazer-se história – e estamos em cima do Natal -, vem de facto desafiar para a conversão. A conversão é esta realidade e há um discurso que importa trazer à consciência, sobretudo dos cristãos. Quando se fala da encarnação como redenção, como libertação do pecado, não estamos a falar de Deus que chega à história na figura de Jesus Cristo para aplacar um pai irado porque alguém algum dia comeu uma maçã, mas a libertação é a liberdade de nós próprios, é o desafio para que sejamos os protagonistas da história. E é aqui que esbarra. Não temos um Deus que gere marionetes, temos um Deus que desafia as suas criaturas para a construção de um mundo de gente livre e capaz de criar espaço de liberdade. E aqui somos nós que falhamos, é outra vez o pecado original, nada tem a ver com maçãs, nem pouco mais ou menos. Aquele que cria todos os males que chegam à história ao mundo, está no segredo da voz da tal famosa serpente. Serpente em hebraico é nahash e isto é quase a onomatopeia deste bicho que rasteja por cima da folhagem seca, deste animal mítico que vive no mundo dos mortos e dos vivos, esta meia-vida, a serpente que tanto pode viver debaixo da terra como por cima dela. E o discurso é este, é tão antigo quanto a própria humanidade, “sereis como Deus”. Todas as nossas atitudes de sobranceria, de pecado, e todos nós temos a mania que pecamos contra Deus, mas não, pecamos é contra os outros. Quando diante dos outros nos autoproclamamos como deuses e tratamos os outros de cima para baixo. E se me permitirem aqui colocar mais uma coisa que é da linguagem moderna e que me irrita solenemente, é a ideia da tolerância. Acho que é um disparate. A tolerância não pode ser um ponto de chegada, tem de ser um ponto de passagem para aquilo que tem de ser o ponto de chegada, que é o respeito. Posso tolerar uma dor de cabeça, posso tolerar alguma situação que não depende de mim, mas quando digo a alguém “tolero-te”, estou a olhar a pessoa de cima para baixo, é dizer que é uma coisa sem valor, uma coisa desprezível, mas “tolero-te”. Portanto, a tolerância não pode ser o ponto de chegada que está a ser proclamado nestes nossos tempos, tem antes de ser um ponto de passagem até ao respeito pelo outro, até ao respeito pela liberdade do outro que não pode ser invadida nem violada, mas que terá de ser alargada num espaço relacional. E é isso que nos falta por causa do pecado original que nos ocupa a todos, é a mania que somos todos santos e imaculados e, sobretudo, que somos Deus.
“A tolerância não pode ser o ponto de chegada que está a ser proclamado nestes nossos tempos, tem antes de ser um ponto de passagem até ao respeito pelo outro, até ao respeito pela liberdade do outro que não pode ser invadida nem violada, mas que terá de ser alargada num espaço relacional.”
Apesar de caminharmos, do ponto de vista formal, jurídico e legal, para Estados laicos, são as religiões que continuam a comandar os povos que fazem parte desses Estados?
Uma coisa é o Estado laico outra coisa é o Estado laicista, não estamos só a discutir linguagem. O Estado laico tem a obrigação, por definição, de conceder a liberdade total às formas de celebração da vida e da fé que não toquem a dignidade da pessoa humana. E aqui entraríamos num discurso muito mais alargado, nem tudo o que se proclama como religião o é, e a medida estará sempre na medida do respeito pela pessoa. Quando em nome de Deus ou de uma qualquer ideia de Deus eu imponho ao outro ideias que vão contra a sua dignidade de ser pessoa, isso não é uma religião, é uma seita. E aí o Estado tem a obrigação de defender os seus cidadãos que podem estar nas mãos de facínoras disfarçados de pessoas da religião. Posto isto, sou profundamente a favor do Estado laico, mas sou profundamente contra um Estado laicista em que ele – Estado -, se transforma na religião nova, transformando o líder num Deus a ser adorado, independentemente das patifarias que o senhor fizer. Aqui entramos na dimensão da tribalização da história, da vida e da política, novamente, na negação do “eu” em nome de um de nós metido num grupo que o controla. É um grupo que o gere e isso é muito mau.
Vamos olhar um pouco para fora da Europa. Pela experiência que tem, sobretudo em África, mas também noutras latitudes, sabe que há perseguições e massacres religiosos e crescente perseguição a cristãos. Recentemente, foram anunciados mais cristãos mortos na Nigéria. Tem a ver com a religião ou há outras razões para esses ódios que se sentem nessas partes do mundo?
O cristianismo é, neste momento, a religião mais perseguida no mundo inteiro, basta ver o número de mortos, assassinados. O cristianismo é perseguido porque toca essencialmente os poderes instalados, não há nenhum Estado autocrático que possa conviver pacificamente com uma comunidade cristã verdadeiramente cristã e comprometida com a vida. Uma comunidade que vai à missa, mas que vai à vida. No chamado Ocidente, temos perdido isto, temos demasiada gente a ir à missa e pouca gente a ir à vida. Graças a Deus que muitos ainda vão à vida.
“O cristianismo é perseguido porque toca essencialmente os poderes instalados, não há nenhum Estado autocrático que possa conviver pacificamente com uma comunidade cristã verdadeiramente cristã e comprometida com a vida.”
Então esses cristãos não são vítimas apenas de extremistas jihadistas, mas também dos próprios Estados que deviam ser neutros em relação à religião, protetores até das religiões minoritárias, mas que não são?
Exatamente. Como digo, a religião é o melhor combustível para atear conflitos. E atirar com conflitos religiosos onde na verdade só existem conflitos económicos e geopolíticos, estou a falar muito concretamente do norte de Moçambique. Costumo dizer que tenho três pátrias: sou português, com muito orgulho e honra, tenho a pátria de geração que é Israel, e tenho a pátria de coração que é Moçambique. E dói, dói-me Moçambique, porque já foi um local de convívio absolutamente pacífico, e quem teve a experiência de viver em Moçambique, quer antes ou depois da independência, sentiu a normalidade relacional entre muçulmanos e cristãos. Nunca Moçambique teve conflitos religiosos. Olhar para a chacina que continua em Cabo Delgado, agora escondida pelos acontecimentos maiores que o mundo ocidental está a viver, o que ali temos é só uma tentativa – que infelizmente creio que será conseguida – de controlo do acesso ao gás, às pedras preciosas e às riquezas do país. Mais uma vez, pelos facínoras que em nome de Deus vêm atiçar pessoas umas contra as outras.
Em relação ao mundo árabe, que tendemos a achar sinónimo de mundo islâmico, há fortes minorias cristãs desde sempre mas que têm vindo a desaparecer. No Iraque têm vindo a reduzir-se, no Líbano e no Egito mantêm-se porque são muito numerosas, mas dá a sensação de que um dia esta memória do cristão árabe pode ser uma ideia do passado ou apenas da diáspora. Preocupa-o também este desaparecimento destes cristãos nesta parte do mundo?
Preocupa-me o desaparecimento de qualquer forma civilizacional de viver a vida, de viver a relação com os outros, de viver a relação com a alteridade, e de viver a relação com Deus. E, infelizmente, temos assistido a um silêncio criminoso por parte das estruturas internacionais, mesmo com a perseguição sistemática, organizada e de destruição. Não só nos países árabes, mas também na Índia com aquilo que está a acontecer com a “hinduização” e com o levar o hinduísmo, por todos os meios, a ocupar espaços como Goa, Damão e Diu. É aquilo que tem sido uma política concertada, sistemática, martelada, para criar dificuldades e afastamento dos cristãos naquela zona. É outra vez de novo e sempre, e desculpem puxar a brasa para a minha sardinha, mas a única religião que é capaz de ser um empecilho aos facínoras e aos ditadores, é o cristianismo. Desde o início que temos cristãos a pagar com a vida por dizer que não ao imperador, desde o tempo do Império Romano.
Talvez por causa disso, deveria a Igreja Católica ter “um exército” como teve noutros tempos ou o poder da palavra chega? Não é uma guerra em que uns estão de fisga e outros de míssil?
É. Não sou de todo a favor dos exércitos armados em nome da fé, estou muito a favor do reforço e isto toca a todos e de qualquer fé. É importante reforçar o exército de gente de fé, gente que não é da religião. Estou estafado de gente da religião, o mundo está cansado de gente da religião e este é o tempo de passar da religião à fé. E aqui cabem todos, cabem cristãos, judeus, muçulmanos, hindus, cabem todas as sensibilidades religiosas. E religião é só isto, é este reconhecimento do “eu” de que o mundo não começou nem termina em mim, que sou parte de um todo, que sou parte de um multiverso gerido e criado por alguém que não sou eu. Isto obriga-me a ser construtor e a ter este sentimento de ser ponto de chegada e de partida. O mundo não começou connosco nem terminará connosco, somos pontos de chegada de todas as experiências de vida e de fé que nos precederam. Oxalá fossemos todos pontos de partida para novas experiências de vida e de fé, independentemente do rótulo religioso que levamos.
“Estou estafado de gente da religião, o mundo está cansado de gente da religião e este é o tempo de passar da religião à fé.”
Isso que nos diz são palavras, mas depois olhamos para o terreno, para as lutas, para as vidas perdidas, para o que as populações sofrem à custa dessas guerras, e parece que as palavras são impotentes para travar o que acontece no terreno que tão bem conhece. Como é que isto se faz? Vamos continuar à espera de que as palavras façam efeito?
Se tivesse resposta para essa pergunta ia eu para a frente a dizer como fazer. Não sei. Aquilo que tenho vivenciado, e estive em muitos países maioritariamente muçulmanos, e estive sempre muitíssimo bem acolhido. São pessoas normais, gente que luta no dia-a-dia para construir e alimentar a sua família, para viver pacificamente na sua sociedade. É gente que não vende notícias e quem as cria são os “não-gente”, os “não-capazes” de construir relações redimidas. Sendo um bocado incorrecto na linguagem, são os gajos e as gajas da religião e para esses não há pachorra. Contra esses, a melhor forma de luta é este exército que precisa de ser organizado, um exército de gente de fé, composto por pessoas que, independentemente da forma como vivem o seu ser e a sua relação com a alteridade, é acima de tudo gente que quer viver a sua relação com os outros. Deixe-me dizer um chavão e voltar a dizê-lo aqui: a missão que nos toca a todos enquanto seres humanos, independentemente das opções políticas, religiosas, sexuais, o que for, é ser gente com gente, para que cada vez mais gente seja gente e nunca ninguém deixe de ser pessoa. Esta luta e esta guerra é uma tarefa individual de cada um de nós.
Falando um pouco daquilo que tem feito em São Tomé e Príncipe, as notícias que de lá chegam nem sempre são muito boas, como a recente tentativa de golpe de estado que ainda está mal esclarecida. Mas, definitivamente, também há coisas boas que chegam a São Tomé, nomeadamente do banco de leite que ajudou a instalar. Qual é o testemunho positivo que pode dar sobre o desenvolvimento do pequeno arquipélago de língua portuguesa? O que é que a acção missionária pode lá fazer, assim como o apoio do Estado português?
Muito obrigado por ter trazido este tema do Banco de Leite de São Tomé e Príncipe. O banco de leite nasceu há treze anos e é só uma das muitas realidades que naquele território dão a cara e dão o coração. Fazem-se simplesmente portadores de partilhas, quer em São Tomé, quer em todos os países como São Tomé que existem pelo mundo. Ao lado de tantas situações de aproveitamento deste tipo de atividades para servirem para lavar dinheiro porco, a esmagadora maioria das pessoas que estão no terreno estão neste processo de ser gente com gente. Estão numa dimensão de partilha. O Banco de Leite de São Tomé e Príncipe, criado há 13 anos, tem este sinal maior: a partilha dos pobres com os pobres. Acabámos de inaugurar na ilha do Príncipe um lar para idosos, quando estiver tudo pago – e está praticamente, falta apenas pagar o último transporte de móveis -, teremos investido ali perto de 400 mil euros. Se todos os grandes, e falo dos muito grandes da política, do desporto, dos socialites de serviço, se todos tivessem cumprido pelo menos metade, tínhamos construído um hotel de sete estrelas. Falharam todos miseravelmente, quem ficou foram os pobres e, por isso, na fachada do edifício pode ler-se “Lar de São Francisco de Assis, dos pobres para os pobres”.
“O Banco de Leite de São Tomé e Príncipe, criado há 13 anos, tem este sinal maior: a partilha dos pobres com os pobres.”
Está a falar de figuras públicas que se comprometem com este tipo de projetos mas depois falham?
Sim, sim. Sabe que os pobres enfeitam que se farta e dão de comer a muita gente, fica bem aparecer na fotografia, mas quando o fotógrafo vai embora quem fica no terreno é quem tem de inventar em cima do acontecimento.
Quem é que se esqueceu de passar o cheque prometido?
Muita gente, muita gente. Quando a obra estiver terminada, todos vão receber a informação e alguns até estava tentado a convidá-los para a inauguração, mas não quis ser tão sacana a esse ponto. Mas, obviamente, vão receber o relatório daquilo que não fizeram. Não é por vingança, é esta forma de dizer “se não podes, não faças, se não podes, não prometas” e “se prometes e não consegues, tens de ter a coragem e a normalidade de dizer que não consegues”. Não é fugir, não é esconder, mas os grandes esconderam-se e os pequenos deram as mãos e a casa está construída.
Mas vamos também falar do lado dos que ajudam, as pessoas e as ONG.
Sim, sim, claramente. Esta estrutura está ligada à Santa Casa da Misericórdia de São Tomé e Príncipe e recebemos donativos de três euros, cinco euros, também temos de dez mil euros, está tudo documentado. Aliás, ainda ontem publiquei os últimos números na minha página do Facebook. Não estamos vinculados nem rejeitamos donativos de quem quer que seja, ser gente com gente não tem a ver com ser membro de uma religião ou de um qualquer partido. Não estamos à venda para ninguém, estamos abertos e precisamos de todos, porque todos precisamos de todos.
Há pouco tempo, fizemos aqui uma entrevista com o responsável pelo Programa Alimentar Mundial e ele deu-nos o número de 15 dólares para se poder alimentar uma pessoa durante um mês nos países do corno de África. A realidade em São Tomé é mais ou menos essa também? Com pouco podemos fazer muito?
Com pouco pode fazer-se muito. Temos calculado, neste momento, na estrutura que já funciona como centro de dia, alimentamos perto de 100 pessoas todos os dias com mil euros por mês. A ilha do Príncipe, por exemplo, tem características próprias, é a ilha de uma ilha, os preços que se praticam localmente são muito mais elevados do que em São Tomé. Para ter uma ideia, um cartão de ovos em São Tomé anda à volta das 130/150 dobras, mas em Príncipe anda entre as 240/260 dobras. Um euro é o equivalente a 25 dobras, um litro de combustível, por exemplo, custa 30 dobras. São realidades de microeconomia, de economias que a partir de fora não são tão fáceis de entender, mas sim, com pouco pode fazer-se muito. Permita-me deixar mais um dos meus chavões. A revolução da história faz-se com a revolução da aritmética, com as quatro operações base, dividir para multiplicar e somar sem subtrair nada a ninguém. E no nosso mundo houve demasiada gente a multiplicar sem dividir e a somar enquanto subtraíam tudo o que puderam aos outros.
Ao lado de tanta pedofilia, infelizmente na Igreja, há milhões de pessoas no mundo inteiro que só existem e que têm dignidade de vida porque a Igreja está lá.”
Mudando de tema, os escândalos de pedofilia e abusos sexuais de membros da Igreja começam a ser revelados e estudados, sobretudo nos chamados países desenvolvidos. Na sua opinião, enfraquecem a Igreja Católica?
Não diria que enfraquecem, obrigam-nos a assumir e a reconhecer aquilo que é parte integrante da nossa humanidade. Todos nós, na nossa história pessoal, temos tempos e momentos dos quais nos arrependemos. As instituições são formadas por pessoas e na nossa história pessoal gostaríamos muito de poder apagar vários momentos da nossa vida, obviamente, na história da Igreja gostaríamos de poder apagar estas páginas negras da história. Não se podem apagar, têm de ser assumidas, revertidas no sentido da evolução do reconhecer, do pedir perdão e do continuar. Ao lado de tanta pedofilia, infelizmente na Igreja, há milhões de pessoas no mundo inteiro que só existem e que têm dignidade de vida porque a Igreja está lá.
Mas uma coisa não apaga a outra.
É o que acabo de dizer.
Uma perda de confiança dos crentes e dos não-crentes nos homens que têm a missão de conduzir a Igreja. Ou seja, aqueles em que supostamente mais devíamos confiar, são aqueles que depois abusam do seu poder, autoridade e estatuto.
Isto impõe justamente aos homens da Igreja a responsabilidade de se situarem, de se medirem, de assumirem o seu papel e a sua responsabilidade.
E isso basta, pedir perdão e assumir?
O que é que quer mais?
Estou a perguntar.
Suicídio? Deixe-me voltar a uma imagem que guardo do primeiro campo de concentração que conheci, Majdanek, ao pé de Lublin, na Polónia. É um campo que está praticamente intacto, quando o Exército Vermelho entrou, os nazis não tiveram tempo de destruir praticamente nada. Os crematórios têm um poço imenso de cinzas humanas, as que não tinham sido ainda enviadas para fora do campo para servir de estrume, e tem o alinhamento dos fornos crematórios. A primeira vez que lá estive, no final do alinhamento dos fornos, o que lá está é uma lamparina de azeite, uma jarra com uma flor e uma placa. Na placa diz qualquer coisa como “quando o crime é deste tamanho, o único remédio é o perdão”. O perdão é libertador, não perdoar a alguém é continuar a permitir que essa pessoa nos continue a fazer mal.
Há uns anos, por esta altura, escreveu uma crónica chamada “Teimosamente é Natal”. O Natal é já amanhã, literalmente. Que Natal será este com um mundo em convulsão, uma guerra na Europa, a fome a crescer por causa da guerra, uma peste que não acabou, destruição e conflitos? Há espaço para celebrar a vinda de um salvador com o mundo neste estado?
O espaço é todo, porque a vinda do salvador vem para ocupar o nosso espaço. Natal não é só uma ave de Deus que se faz homem, é sobretudo um murro nas tripas dos instalados. Nesta altura do ano, temos alguma tendência em “bater” nos habitantes de Belém porque não acolheram Jesus, porque fecharam as portas e etc., mas isto só se diz por ignorância. Diz-se por dado adquirido que Jesus nasceu em Belém, mas quando Maria e José partem de sua casa na Nazaré em direcção a Belém, sabem que o menino não vai poder nascer num sítio normal. Uma casa onde nascesse um menino ficava interdita durante 30 dias e uma casa em que nascesse uma menina ficava interdita durante 60 dias. Eram as normas de protecção da maternidade e da mãe. O que ali está, em Belém, não é a rejeição de nada nem de ninguém, o que ali está é alguém, não sabemos quem, um homem ou uma mulher, proprietário de um espaço menos digno, um espaço de animais. Mas foi alguém que abriu o seu possível a Deus que chega e é Deus que chega no possível da nossa humanidade. Celebrar o Natal em tempos complicados desafia-nos a entrar no possível da nossa história e, a partir de dentro, transformá-la no perdão, no reconhecimento do pecado, no refazer de vidas desfeitas, no acolher de quem também sofreu por nossa causa, e no acolher de toda a gente que é chamada a partilhar do presépio, de todos os presépios de todos os beléns da história. Este ano, faz sentido celebrar o Natal.